Personagem central d'A Costa dos Murmúrios (1988), de Lídia Jorge, Eva Lopo é também a narradora que, pelos artifícios da memória, articula a estrutura do romance que tematiza a guerra colonial em Moçambique. A obra é composta por duas narrativas que, pela justaposição, em diálogo, confrontam os efeitos do discurso histórico-documental e do discurso ficcional. Na primeira, capítulo que abre o romance, intitulado “Os gafanhotos”, a figura "a quem todos já chamavam simplesmente de Evita" (Jorge, 2004: 10) é conhecida pela perspectiva do narrador heterodiegético, limitada ao cumprimento de seu papel: "A noiva suspirou não de cansaço ou de sono mas de deslumbramento" (11). O capítulo consiste no episódio de cerimônia das bodas da portuguesa Evita e do alferes português, Luís Alex, miliciano a serviço da guerra colonial em África, em fins da década de 60. A partir da focalização sobre os convidados militares e suas perspectivas sobre a guerra, são apresentados os eventos ocorridos durante a comemoração do casamento: a aparição de maciço número de negros mortos na praia, a chuva de gafanhotos e a trágica morte do noivo. Esses acontecimentos decorrem em dois dias nos arredores e, sobretudo, no terraço do Hotel Stella Maris, Beira, em Moçambique, espaço de vista privilegiada voltado ao Índico que abrigava as famílias dos oficiais durante a guerra colonial. Apesar do caráter pretensamente objetivo e descritivo dessa primeira narrativa, os raros momentos de onisciência do narrador permitem já inferir a centralidade dessa personagem na trama.
A segunda narrativa, em contraste com os princípios de exteriorização e objetividade que regem a primeira, consiste no relato feito pela própria voz de Eva Lopo. Vinte anos depois, a narradora, espirituosa e sarcástica, revela a sua versão dos fatos apresentados em "Os gafanhotos", desconstruindo o quadro inicialmente emoldurado: "Prefere a harmonia? Eu também, é por isso que tanto estimo a paz que se respira na noite d'Os gafanhotos." (69) Nos nove capítulos que dão sequência à narrativa inicial, o testemunho questionador de Eva Lopo revela, gradualmente, a transformação e o desdobramento de sua figura desde a suposta ingênua e concordante "então conhecida por Evita, o nome de som mais frágil de que há memória" (70), até a cínica Evita - "Oh, como Evita era cínica" (80), e que se torna a irônica e emblemática Eva Lopo: "Estimo os países de vocação metafísica total, os que não investem na fixação de nada. (...) Aprecio imenso esse esforço de tudo apagar para se colaborar com o silêncio da Terra" (131).
O desvelamento da sua imagem pode ser observado, do ponto de vista da dinâmica espacial, pela variedade de lugares públicos que compõem a narrativa de Eva Lopo, além do Hotel Stella Maris. Em oposição à clausura por onde se movem as demais personagens femininas, a protagonista passa a percorrer livremente a cidade em busca da solução do enigma que envolve a morte dos negros por envenenamento. O trânsito de Evita em lugares que deveriam ser frequentados preferencialmente por homens, como o Jornal Hinterland e o cabaré Moulin Rouge, bem como o seu envolvimento com o jornalista Sabino, evidenciam o caráter rebelde de sua personalidade. Sua transformação, de companheira do noivo à transgressora da aparente ordem social, não por acaso, evoca os significados referentes à bíblica Eva: "A mulher notou que era tentador comer da árvore, pois era atraente aos olhos e desejável para se alcançar a inteligência" (Gênesis, 3: 6). Moçambique deixa de ser apenas o espaço onde, temporariamente, ela deveria se adaptar para acompanhar o alferes e se torna o motivo central de suas preocupações. À medida que a questionadora Evita avança sua investigação, redimensiona-se sua consciência sobre esse universo, sobretudo com relação à guerra: "A desvalorização da palavra [guerra] correspondia a uma atitude mental extremamente sábia e de intenso disfarce" (Jorge, 2004: 74).
A figura de Eva Lopo também é construída pela relação sistêmica que mantém com a personagem Helena, mulher que considera apenas um corpo "de abstração, em simultâneo, da Beleza, da Inocência e do Medo" (90). Quanto mais Evita deseja o distanciamento de Helena, personagem que oculta a violência doméstica sofrida e, a partir disso, realça a hegemonia masculina, mais próxima daquela se torna, corporificando, pelo desejo de denúncia, a luta de libertação que trava consigo mesma e com o mundo. A desilusão com a verdadeira natureza de Luís Alex, que se transformara em "um homem que degola gente e a espeta num pau" (167), e a percepção realista sobre a guerra, “um sentimento de agonia pessoal que anda de mãos dadas com uma consciência clara de agonia colectiva” (241), coincidem com a ruína do Hotel Stella Maris, símbolo da afirmação do império português.
A alteridade consequente da dimensão temporal memorialística redobra a força figurativa de Eva Lopo, uma vez que essa “ocupa-se simultaneamente das duplicidades da representação e da memória – que lembra e esquece, que ressuscita e apaga” (Saraiva, 1992: 73). Por meio do jogo articulado na composição dessa personagem, projeta-se na obra o discurso de contestação às formulações que intencionam erigir-se como verdade única, pois "uma memória fluida é tudo o que fica de qualquer tempo, por mais intenso que tenha sido o sentimento, e só fica enquanto não se dispersa no ar. (...) Acho até interessante a pretensão da História, ela é um jogo mais útil e complexo do que as cartas de jogar" (Jorge, 2004: 42). A consciência de que a crise social portuguesa está atrelada aos modos de construção da história nacional e seus mitos é o alicerce da figurativização d'A Costa dos murmúrios, que “trabalha a mitologização para encaminhar à desmitologização, através de teses históricas dialeticamente pensadas” (Tutikian, 2003: 13).
A transposição da personagem Eva Lopo para o cinema ganhou forma na atuação de Beatriz Batarda, que arrebatou o prêmio Globo de Ouro na modalidade Melhor Atriz em 2005. O filme A Costa dos Murmúrios, adaptação do romance homônimo, é de Margarida Cardoso e estreou-se em 25 de novembro de 2004.
Referências
Gênesis, Bíblia Sagrada (2001). Tradução de Domingos Zamagna et al. Rio de Janeiro: Vozes.
JORGE, Lídia (2004). A costa dos murmúrios. Lisboa: Publicações Dom Quixote.
SARAIVA, Arnaldo (1992). "Os duplos do real e os duplos romanescos (A costa dos murmúrios, de Lídia Jorge)". Estudos portugueses e africanos. Unicamp. 19: 67-76.
TUTIKIAN, Jane (2003). "Os bastidores revelados (as mulheres e as narrativas históricas)". Revista Signo. 28 (45): 7-15.
[publicado a 02-02-2020]