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Arnaldo Cunha

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Autor: Capa da edição Sá da Costa

Arnaldo Cunha (AUGUSTO ABELAIRA, O bosque harmonioso)

Arnaldo Cunha é a personagem principal e o narrador do romance-palimpsesto O bosque harmonioso, de Augusto Abelaira, publicado originalmente em 1982.

Esta personagem, de classe média urbana, historiador, debate-se com a tradução a partir do latim e com a publicação de dois textos que, de forma perfeitamente casual e inesperada, lhe vieram parar às mãos: Vida singular de Cristóvão Borralho, cavaleiro em Humanidades, uma obra supostamente escrita com propósitos laudatórios por Gaspar Barbosa, e O bosque harmonioso, texto apócrifo cuja autoria caberá, no entender de Arnaldo Cunha, a Cristóvão Borralho.

A obra constrói-se numa sucessão de capítulos diferenciados e numerados, que tanto correspondem à vida do protagonista Arnaldo Cunha, como constituem reproduções de partes da obra em tradução (a biografia de Borralho) ou em vias de publicação (O bosque harmonioso, que se revela, no fundo, como uma violentíssima versão paródica de um texto outrora sobejamente conhecido, de teor místico, conhecido como O bosco deleitoso). O fio condutor da narrativa encontra-se no tom reflexivo do narrador que, à boa maneira de Abelaira, se debruça insistentemente sobre temas como o amor (ou o fracasso incontornável do mesmo, representado simbolicamente por Irene, Leonor, Helena, e pelas sucessivas relações falhadas da personagem), a arte (as suas funções, as suas condições de existência e de manifestação ao longo dos séculos, a sua mensagem) e a política (que tudo condiciona e que surge sempre de forma espectral como a ameaça da deriva e retorno à direita, no período pós-25 de abril).

Os olhos de Arnaldo Cunha filtram, por conseguinte, toda a realidade, demonstrando no mesmo impulso de que forma essa mesma realidade está definitivamente fora de alcance ou, por outras palavras, é sempre determinada pelas lentes subjetivas de quem a observa e, dessa forma, a reconstrói. O romance apresenta-se, assim, como um exercício metaficcional, que revela de que modo o saber total é impossível, face às limitações dos instrumentos e linguagens disponíveis. Esta reflexão hermenêutica, no fundo, dada a formação em História da personagem principal, é um questionamento sobre as limitações e os condicionalismos da História ou, melhor dizendo, da tarefa historiográfica de reconstrução dos acontecimentos. O fracasso é inevitável, visto que Arnaldo Cunha não encontra uma lógica, nem uma razão subjacente ao curso dos acontecimentos e conclui o seguinte: “A vida, um tecido de coincidências, e a História, insondável nos seus propósitos, escolheu-me para intérprete dessas coincidências” (Abelaira, 1987: 97).

O romance O bosque harmonioso revela-se, graças a esta estratégia compositiva, um objeto híbrido de difícil caracterização, levando Arnaldo Cunha a descrevê-lo de forma autodepreciativa: “Enfim, este caderno vai-se tornando uma manta de retalhos, espécie de caixote de lixo onde despejo tudo” (30). Este “caixote do lixo” permite, contudo, a Arnaldo Cunha proceder a exercícios de reflexão produtivos e consequentes, de teor epistemológico e hermenêutico, a partir do momento em que a ironia se insinua em múltiplos exemplos paródicos e satíricos de excertos das obras sobre as quais o narrador exerce o seu olhar crítico. De facto, as teses de Michel Foucault e de Sapir-Whorf sobre a linguagem e a referencialização, de Sigmund Freud sobre a religião, de Karl Marx sobre a lógica capitalista, para só dar alguns exemplos, surgem parodiadas em histórias fantásticas de macacos que prenunciam aquilo que Abelaira realizará mais tarde em O único animal que? (1985): a reflexão sobre a irracionalidade humana ou sobre a forma como o excesso de racionalidade (e de civilização) conduz, por vezes, ao absurdo. Nessa medida, apesar de tudo, a ironia presente na obra, nomeadamente na fábula dos macacos falantes, surge como estratégia de fuga face a um niilismo redutor que poderia conduzir inelutavelmente à desistência do narrador.

Esta ironia manifesta-se neste romance, o mais hilariante e cómico da obra de Augusto Abelaira, nas referências literárias de cunho paródico. De facto, será fácil a qualquer leitor arguto perceber as referências a Marcel Proust (e, mais precisamente, à obra À la recherche du temps perdu) no jocoso capítulo 69, quando a biografia de Cristóvão Borralho nos descreve o reencontro desta figura com a sua infância perdida, no momento em que este se deitou “carnalmente com uma velha muito gasta pela vida” (83). Este registo paródico (tal como aquele que narra a história do menino azul e que se assume como uma referência à obra Peregrinação de Fernão Mendes Pinto) revela bem de que modo a ironia pode servir simultaneamente propósitos distintos, que vão desde o louvor mais exaltado, à depreciação mais violenta (neste caso, do cânone literário instituído e dos valores civilizacionais em vigor).

Em conclusão, Arnaldo Cunha encontra-se imerso num universo textofânico, compreendendo à boa maneira desconstrucionista que “il n’y a pas de hors-texte” e que, tal como um náufrago pronto a afogar-se num mar de textos e de papéis, não tem outra solução senão adaptar-se às circunstâncias e continuar a nadar, isto é, a embrenhar-se nos textos, perscrutando-os para tentar retirar-lhes algum sentido.

A textualização do real é inevitável e a única solução de vida possível. Por conseguinte, Arnaldo Cunha conclui, no final da obra, que fica em aberto, o seguinte: “Toda a amargura. Saber que a vida não tem sentido e no entanto continuar a procurá-lo. A amargura. A serenidade” (151). Nessa medida, no esforço de inquirição do sentido da vida, não interessará o destino, mas sim os ricos e variados caminhos percorridos.

 

Referência

ABELAIRA, Augusto (1987). O bosque harmonioso. 2.ª ed., Lisboa: Edições O Jornal.

Carlos Machado