Giovanni Fazio é a personagem principal do primeiro romance de Augusto Abelaira (1926-2003), A cidade das flores, publicado em 1959. Esta obra, cuja ação ocorre em Florença durante o período de vigência do regime fascista de Benito Mussolini, integra-se na segunda fase do movimento neorrealista português e pretendeu contornar a vigilância da censura política salazarista, camuflando a descrição das iniquidades e das injustiças do regime social vigente em Portugal a coberto da apresentação em dois tempos (antes e depois da segunda guerra mundial) da situação política italiana. Como refere explicitamente Abelaira no posfácio da obra, publicado somente em edições dadas à luz no pós-25 de abril, “quando eu escrevia Florença pensava em Lisboa, quando escrevia Mussolini (que já estava morto e enterrado) pensava em Salazar” (Abelaira, 1984: 307).
A importância de Giovanni Fazio no conjunto da obra abelairiana é enorme por conter em embrião um conjunto de características que se manifestará nas personagens criadas posteriormente e que envelhecerão paralelamente à figura do próprio autor. De facto, este jovem - que na obra conhece, se envolve e casa com Rosabianca, amor idílico do seu melhor amigo, Leonardo Vianello - debruça-se sobre temas que se revelarão centrais na obra de Abelaira, nomeadamente: a radical incomunicabilidade entre os sujeitos; o efeito da usura do tempo nas relações amorosas; a inutilidade do esforço de empenhamento político; as perversas consequências do exercício do poder, que põem em causa a pureza dos princípios; a impossibilidade da cisão maniqueísta entre bem e mal; a dificuldade de prever um rumo para a História; a desistência e a recusa do empenhamento político e social como solução para manter a integridade; o papel, o lugar e a função da arte em sociedades injustas e opressoras; o lugar do sujeito e a (im)possibilidade da sua emancipação em regimes opressivos.
Giovanni Fazio surge, tal como Abelaira refere no posfácio à segunda edição, como o representante de “uma certa classe média simultaneamente cética e otimista, mais capaz de pensar que de agir, suscetível de heroísmo na recusa, mas pouco dado ao gesto ofensivo e prático” (295-296). Assim sendo, enreda-se nos problemas da sua consciência, por perceber que a procura da felicidade individual pode ser criminosa quando tantos outros dos seus concidadãos sofrem perseguições, abdicando do seu bem pessoal a favor da comunidade (algo que, manifestamente, Giovanni nunca conseguiu fazer). Nessa medida, esta personagem anuncia um tema que, no segundo romance de Abelaira, Os desertores (1960), se assume com maior premência e visibilidade: a segurança, o conforto pessoal e os desígnios individuais tornam a classe média urbana (em que as personagens deste romancista se integram) desistente, sem coragem, vil e propensa à autocomiseração, porque os seus elementos tentam, apesar de tudo, viver uma felicidade mitigada, constrangida, uma tristeza contentinha (como aquela que poetas como Alexandre O’Neill descreverão de forma lírica e desapaixonada). Esse dilema moral é assumido por Giovanni Fazio quando reconhece que “já não vale a pena lutar, nada poderemos, fomos traídos, até por nós mesmos” (158).
A solução possível para os dilemas instaurados surge na criação reiterada de álibis que não convencem ninguém, inclusive os seus próprios criadores, como forma de recusa da assunção de responsabilidades. Assim, Giovanni Fazio é pródigo nas desculpas, afirmando que “dantes uma revolução era fácil; hoje é impossível” (112) e que a solução poderá perfidamente surgir com a instauração da segunda guerra mundial.
A culpa da existência criminosa de um regime opressivo parece ser sempre da conjuntura e das circunstâncias e nunca dos sujeitos, ao ponto de a personagem chegar a declarar enfaticamente o seguinte: “às vezes creio que a civilização está no fim” (158).
Face ao estado de coisas, a utopia possível reside exclusivamente na literatura como forma de criação ilusória de realidades alternativas, libertas dos constrangimentos da crueza dos dias e dos sujeitos. Desse modo, a cidade das flores (isto é, do amor, da liberdade, da poesia) nunca será Florença e só se tornará possível num futuro quimérico que Giovanni Fazio envergonhadamente (e às escondidas da sua própria mulher, inclusive) criará sob a forma de um romance, apresentado no interior da narrativa como contraponto e fuga da ação descrita.
Referência
ABELAIRA, Augusto (1984). A cidade das flores. 7.ª ed., Lisboa: Edições O Jornal.
[publicado a 09-01-2020]