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João Sem Medo

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Autor: Fábio Mordomo

João Sem Medo (José Gomes Ferreira, Aventuras de João Sem Medo)

João Sem Medo é o protagonista de um conjunto de contos ("Os Contos do Avô Cachimbo") publicados semanalmente, durante o ano de 1933, na gazeta infantil O Senhor Doutor. A personagem, criada por José Gomes Ferreira, é oriunda de uma aldeia chamada Chora-Que-Logo-Bebes, “onde as pessoas de tanto chorarem trazem musgo nos olhos e verdete na boca” (Ferreira, 2017: 153). Certo dia, farto de “tanta chorinquice”, João Sem Medo decide galgar o muro que separava Chora-Que-Logo-Bebes da Floresta dos Entes Fantásticos. No outro lado do muro, esta personagem é apresentada a uma bifurcação onde terá de escolher entre o caminho do Bem, "asfaltado, cómodo, ladeado de amendoeiras em flor", e do Mal, “pedregoso e eriçado de espinhos, urtigas e urze” (14). Seguir o caminho benévolo implica ficar privado da sua cabeça ou, após desmantelada a metáfora, perder a capacidade de pensar e contestar. Insatisfeito com esta proposta, João Sem Medo prefere seguir o caminho espinhoso do mal.

Na nota à segunda edição, José Gomes Ferreira conta que João Sem Medo terá nascido num “ambiente de estúrdia mansa e anseios mutilados”, em que o autor era obrigado a escrever "literatura alimentícia" para sobreviver (166). A pressão para publicar marcou profundamente esta obra. Tal como José Gomes Ferreira refere, “as circunstâncias não (…) permitiam esmeros de oficina escrupulosa” (169), pelo que a criação destes seus contos seria o resultado de exercícios de improvisação ditados pelos ponteiros de um relógio. As condições em que decorria o processo de escrita haveriam de contribuir para uma acentuada exploração do absurdo e para a geração de uma obra com pendor surrealista. Já a sua estrutura multilinear não é apenas o resultado de uma publicação episódica, mas também de uma preferência por um texto navegável (isto é, rizomático e deambulatório), reminiscente da literatura de viagem.

A urgência em finalizar mais um conto haveria igualmente de influenciar a construção da personagem. Segundo Gomes Ferreira, para “facilitar o fardo do conto semanal”, este autor decidiu criar um “herói de sabor popular que desafiasse as forças enigmáticas da Floresta Branca” e “desmistificasse os Gigantes, os Príncipes, as Princesas, as Fadas” (167). Desta forma, João Sem Medo estava destinado a assumir duas funções: uma de índole metaliterária e outra de cariz ideológico. Quanto à primeira função, segundo o próprio autor, Aventuras de João Sem Medo surge como uma modernização das Aventuras de Telémaco, ao mesmo tempo que celebra os romances filosóficos de Voltaire ou as Novelas Exemplares de Cervantes conferindo-lhes, todavia, “um estilo oral” (171), compatível com o tom popular de Aventuras de João Sem Medo. De acordo com Carlos Reis, “a dinâmica da viagem” e o “privilégio de elementos fantásticos” cooperam para a disseminação da “mensagem ideológica” contida nesta obra (Reis, 1982: 178). A resistência ao medo, uma característica desta personagem enfatizada pelo seu cognome, é repetidamente testada ao longo da viagem de João Sem Medo. Este seria “valente e refilão, sem idade determinada nem feições fixas, a fim de cada um lhe desenhar o perfil e atribuir a idade que lhe desejasse” (Ferreira, 2017: 168). João Sem Medo começa, assim, por ser um nome sem rosto até que, em 1933, a ilustradora Ofélia Marques confere a esta personagem a aparência de “um menino burguês de colarinho à bebé, muito fino, muito composto” (172). Para Gomes Ferreira, retratado desta forma, João Sem Medo tornava-se num “anti-herói completo” (172). O seu criador havia imaginado o destemido João como sendo um “inimigo de déspotas e tiranias” (168) e como um rapaz “leal, duro, intransigente, criador constante da própria liberdade e atirador implacável de nãos contínuos” (168), pelo que o retrato pueril e inocente de João sem Medo desenhado por Ofélia Marques era incompatível com a personalidade e missão desenhadas pelo seu criador.

José Gomes Ferreira testemunhou o progressivo agrilhoamento da Europa executado por regimes ditatoriais. Ainda que antecedendo o Neorrealismo, um dos movimentos literários com os quais se cruzou ao longo do século XX, também José Gomes Ferreira manifestava o desejo de comunicar uma mensagem “de teor acentuadamente ideológico” (Reis, 1983: 17) e uma criação poética que tentava estabelecer “uma identificação militante com o mundo” (83). Tendo em conta estes fatores, é possível concluir que, neste “panfleto mágico em forma de romance”, a presença do fantástico, do absurdo, e da ironia, serve o propósito de inverter o status quo e denunciar o sistema político vigente. Tal como é sugerido pela própria personagem no final desta narrativa, para além de engendrar uma revolução na literatura, talvez o seu objetivo também “seja o de tentar revolucionar Chora-Que-Logo-Bebes… endireitar as espinhas dorsais das pessoas... secar as lamentações covardes” (Ferreira, 2013: 153). Carregando consigo preciosas mensagens subliminares que espelham a militância de José Gomes Ferreira, as suas aventuras não se destinavam apenas ao público infantil, mas também a “crianças imaginárias (que todos trazemos escondidas na nossa soberba gravidade de adultos)” (168). E é talvez por causa do desalento provocado pelos adultos que Gomes Ferreira acaba por descrever a sua personagem como um “pequeno-burguês gabarola que se ilude de não parecer covarde” (175), ou como um “não-herói cínico” (174) que enriquece graças ao fabrico de lenços de papel vendidos aos seus conterrâneos.

As Aventuras de João Sem Medo contavam, até ao ano de 2017, com quarenta edições e duas traduções para a língua romena e para a língua russa. Estas aventuras pertencem ao Plano Nacional de Leitura e têm vindo a ser lidas por diferentes gerações. Servem frequentemente de génese a peças apresentadas em escolas ou teatros. A título de exemplo, entre 10 de fevereiro e 21 de abril de 2012, as Aventuras de João Sem Medo subiram ao palco do Teatro Nacional D. Maria II (com versão cénica e encenação de João Mota). Também migraram para um filme de animação (João Sem Medo, 2008) realizado por Luís da Matta Almeida e produzido pela Zeppelin Filmes para a RTP.

 

Referências

Almeida, Luis da Matta (dir.) (2008). João Sem Medo [filme de animação]. Disponível aqui.

Ferreira, José Gomes (2017). As aventuras de João Sem Medo. Lisboa: Dom Quixote.

Mota, João (2012). As aventuras de João Sem Medo [peça de teatro]. Disponível aqui.

Reis, Carlos (1982). “A ideologia do fantástico: Aventuras de João Sem Medo”, in A construção da leitura. Ensaios de metodologia e de crítica literária. Coimbra: Centro de Literatura Portuguesa, pp. 177-183.

Reis, Carlos (1983). O discurso ideológico do Neorrealismo português. Coimbra: Livraria Almedina.

Daniela Côrtes Maduro