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Felícia

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Autor: Capa de edição d'A Corja, Lello e Irmão

Felícia (Camilo Castelo Branco, Eusébio Macário e A corja)

Felícia, personagem dos romances facetos de Camilo Castelo Branco, Eusébio Macário (1879) e A Corja (1880), é caracterizada, no primeiro capítulo da narrativa, como uma “mulheraça frescalhona”, de trinta e cinco anos, de “coloração sanguínea” (Castelo Branco, 1988b: 472), a “fêmea” do cónego Justino; é irmã do brasileiro Bento José Pereira Montalegre, barão do Rabaçal, e torna-se mulher de José Macário, o Fístula. Acaba por se divorciar e por voltar a juntar-se com o eclesiástico.

No decurso da narrativa, a personagem será apresentada ao leitor através da sua própria focalização, da do narrador omnisciente e das de outras personagens: Justino, Eusébio e José Macário, padre João da Eira, Custódia, Nazaré ou Eufémia Troncha. Vê-la-emos ascender na escala social, transformar-se fisicamente e evoluir do ponto de vista psicológico.

De adolescente simples de Padornelos, marcada por uma inteligência inerte, tão avessa aos homens que se pensava pertencer ao sexo masculino (473) - afinal não era mais do que uma “Inês de 'Carasto'” (479) à espera do amado -, Felícia converte-se, dez anos mais tarde, numa mulher anafada que namorisca o padre de Santiago da Faia e dele recebe “regueifa doce, vinho maduro, e palmadas de gratidão infinita nas ancas roliças” (472) por lhe esfregar os artelhos durante as crises de gota de que padece. Aos quarenta, mirando-se ao espelho, desenvolve apreciações “realistas” (524): considera-se uma estampa de mulher, sadia, que pode vir a cumprir as funções nupciais que o irmão lhe incute, com a promessa de um avultado dote de cem mil cruzados. Passa a ter preocupações com a Moral, a Religião e o Sacramento, acreditando que, através do matrimónio (sem amor) com o Fístula, pode alcançar uma certa honestidade, aquela que transparece nos comentários de alguns habitantes do Porto, que veem a irmã do barão como “fazenda muito limpa” (540).

A vida em casa do abastado irmão, um brasileiro de torna-viagem – que primeiro se fixou na aldeia de Vassouras e depois num palacete na cidade da Virgem, com intermitências em Lisboa –, e a sua condição de “senhora” com casa na Boavista, imprimem mudanças significativas aos hábitos da personagem: aprende a ler e a escrever, passa a frequentar a Assembleia Portuense, a Filarmónica, vai a concertos e ao teatro, usa chapéu e muitos ouros, veste-se “à grande”, calça “botinhas de duraque” (530). O abade Justino achou-a mudada, admirou-lhe a palidez da face, o “pisar” lisboeta (Castelo Branco, 1988a: 599), a elegância no trajar.

No que respeita à sua caracterização psicológica, a personagem mantém inalterado o amor que dedica a Justino desde a mocidade, sentimento que legitima outros que lhe estão associados: o ciúme, quando o cónego dirige olhares cobiçosos a Custódia, e o tédio de se achar só, quando o amante se ausenta para visitar, entre muitas outras, a fidalga do Castelo, em Celorico; o ódio por ele se ter juntado a Eufémia Troncha, na altura em que Felícia vai para casa do irmão; a vergonha por ter com ele passado dezasseis anos de vida marital; o remorso, consequência da leviandade do casamento, sem amor, com o Fístula, vinte anos mais novo; a tristeza resultante da malograda experiência conjugal, uma vez que o marido a preferira à Marta Trigueiros e, sobretudo, à Pascoela.

Do ponto de vista da operatividade diegética, Felícia é uma personagem incontornável em ambos os romances, na medida em que pelo seu casamento com o Fístula, filho de Eusébio Macário, passou a integrar a “família Macário” (553), facto que permitirá evidenciar a importância que o grupo e o meio desempenham na perspetiva naturalista de identificação de tipos comportamentais na sociedade portuguesa do século XIX. Se a coletividade é considerada um organismo em movimento, o romance deve entender-se como exploração de um sistema, capaz de distinguir entre o normal e o patológico, capaz de saber quando e como o indivíduo se tornou devasso. A personagem não é apenas reveladora de uma realidade mas é também o espaço por excelência de investigação.

Felícia, que sempre fora a “preferida” (Castelo Branco, 1988b: 552) do cónego, é a causadora da saudade, dos remorsos e, particularmente, da vingança de Justino. A leitura que este faz do Periódico dos Pobres, jornal cabralista, informa-o do enlace e por esse motivo quer ir para o Porto para afrontar ‘a corja’ com a sua presença, para a ridicularizar. Quer vingar-se por ter sido vilmente repelido do “grémio dos Macários” (Castelo Branco, 1988a: 605), por lhe terem tirado Felícia e por a terem desgraçado; é seu dever socorrê-la e perdoar-lhe, razão pela qual trata de orquestrar o divórcio do casal, bem como a separação do barão do Rabaçal e de Custódia Macário.

A especificidade do realismo camiliano centra-se na questão de saber como se comporta o sujeito no meio social, através da abordagem de temas-chave como o da influência do meio sobre a personagem, ou o da submissão do subjetivo e do psicológico ao fisiológico.

Se a intriga narrada é específica de um determinado momento da história da sociedade portuense de 1845, a verdade é que os tipos humanos se confundem no mesmo vício de materialismo, o que leva o autor a interessar-se essencialmente pelas peripécias decisivas e a reter delas apenas o banal e o simples – podridões sociais, personagens sem escrúpulos, torpes e gananciosas. A curiosidade do escritor prende-se não ao extraordinário mas ao vulgar que, apresentado sob o prisma da escrita, suscita o interesse do leitor.

 

Referências

CASTELO BRANCO, Camilo (1988a). “A corja”, in Justino Mendes de Almeida (dir.), Obras Completas, vol. VIII. Porto: Lello & Irmão.

––––– (1988b). “Eusébio Macário”, in Justino Mendes de Almeida (dir.), Obras Completas, vol. VIII. Porto: Lello & Irmão.

Maria Eduarda Borges dos Santos