Personagem principal do conto, originalmente publicado em 1881, no volume Contos, é à cor do seu farto cabelo que deve o nome por que é conhecida no meio em que circula. E assim é designada pela primeira vez na narrativa, por alguém que, ao perguntar por ela, desencadeia o relato da sua vida tumultuada e breve. Órfã de mãe e ignorada por um pai sempre ausente, diz-nos o narrador que “não se sabe como a pequena se criara, mas aos doze anos era bonita, franzininha, o nariz arrebitado” (Almeida, 1878: 9-10). E aos quinze “era branca, delicada e nervosa” (15).
Estes traços fazem parte de um retrato que a narrativa frequentemente retoma, insistindo na brancura da pele, na harmonia das formas do seu corpo pequeno e magro, na frágil suavidade da sua figura. A debilidade física de Carolina – assim se chama a personagem – alberga um outro tipo de debilidade, própria de quem desde sempre esteve entregue a si mesma, sem ninguém que a dirigisse por palavras ou exemplos. É, por isso, uma criatura sem rumo, vivendo ao sabor dos seus impulsos e sob a férrea influência do meio em que nasceu: pobreza miserável e sórdida, violência, promiscuidade, álcool e prostituição. A tudo isto acresce o quotidiano e familiar convívio com a morte, presente no espaço do Cemitério dos Prazeres, onde o pai de Carolina é coveiro e do qual apenas sai para se dirigir à taberna fronteira.
Impondo-se ao longo de toda a narrativa, é neste espaço do cemitério que Carolina cresce – brincando, ajudando o pai, aprendendo a ler nas inscrições tumulares e alimentando a sua doentia e sobre-excitada imaginação no contacto direto com os cadáveres, numa inequívoca manifestação de necrofilia. É ainda este o espaço que serve de cenário à sua entrega ao jovem que será o seu primeiro amante. Não conseguindo resistir ao desleixo e ao desmazelo de Carolina – sem preparação nem hábitos de trabalho para cuidar da casa e de si própria – o entusiasmo de João (é este o nome do jovem) dá lugar à saciedade e até mesmo à repulsa. A partir daqui, Carolina inicia a descida até aos últimos degraus da degradação, acatando passivamente os conselhos de uma velha e sórdida prostituta, sua vizinha. É, de resto, esta tenebrosa criatura que, perante o iminente abandono de João, estimula Carolina a procurar trabalho na fábrica de tabaco, em Alcântara, apresentando-lhe essa via, não como uma fonte de rendimento digno e dignificante, mas antes como a passagem direta à vida fácil que a promíscua convivência entre os operários propicia.
A fábrica, como local de devassidão e libertinagem é, pois, mais um degrau no trajeto descente da personagem, que aceita como inevitável a ausência de opções na sua vida. Uma vida marcada pelos excessos que a miséria e o abandono incentivam e cujo relato cabe a um narrador que os testemunha: estudante de medicina, o que justifica o conhecimento e a frequência do mundo que gravita em torno do cemitério, revela-se ao manifestar discretamente, na primeira pessoa, o repúdio pelas reações suscitadas pela morte da “Ruiva”, entre os frequentadores da taberna, e ao dar a saber o seu papel na autópsia daquela “perdida criatura” (9). A natural curiosidade que aquela cena lhe provoca leva-o a procurar os factos necessários à reconstituição de uma vida cujo fim lhe fornece “subsídios notáveis à (…) tese inaugural” (9), permitindo aos leitores da narrativa que daqui resulta aproximarem-se de alguém que de criatura se transforma em pessoa e de “Ruiva”, como é designada entre a turba bestial da taberna, passa a Carolina. Mas por exaustiva que seja a indagação deste narrador, a omnisciência não está ao seu alcance, e só esta consegue penetrar na consciência da personagem. Por isso, logo no início do relato da vida que nos é dada a conhecer, a primeira pessoa desaparece subtilmente do discurso, para reaparecer apenas nas últimas linhas da narrativa, emoldurando-a e assumindo um tom meditativo “sobre as causas prováveis da grande desmoralização atual” (96), de que Carolina e a sua triste trajetória são o exemplo.
Assim termina o conto de Fialho de Almeida, cuja data de publicação o situa em pleno naturalismo português. Acrescente-se, contudo, que a escolha do tema e, sobretudo, o tratamento de que é objeto – sobre a recolha de tudo o que há de mais vil na natureza humana e no seu implacável destino, que é a morte, – imprimem-lhe traços de um naturalismo sem esperança, premonitório do decadentismo finissecular.
Referência
ALMEIDA, Fialho de ([1878]1971). “A Ruiva”, in Contos. Lisboa: Livraria Clássica Editora.