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Luísa (O primo Basílio)

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Autor: Henrique Cayatte
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Autor: Danik Patisson (com António Vilar).

Luísa (O primo Basílio) (Eça de Queirós, O Primo Basílio)

Personagem principal do romance que Eça de Queirós publicou em 1878. O êxito junto do público, traduzido nas três edições ainda em vida do escritor, terá ficado a dever-se à ousadia, muito mais insinuada do que explicitada, que Eça conferiu ao tratamento do tema e de certas personagens. Com efeito, os críticos da época dividiram-se entre o aplauso e o ataque ao que consideraram uma imoralidade, embora o adultério feminino – é este o tema do romance – fosse um assunto amplamente tratado na produção literária do realismo e do naturalismo.

A história de que Luísa é protagonista tem Lisboa como cenário, decorre durante alguns meses com início num tórrido e abafado mês de julho, e é construída sobre as circunstâncias necessárias à ocorrência do adultério: o marido, Jorge, que se ausenta em trabalho para o Alentejo; a mulher que fica só, dividindo-se entre o bordado, o piano e a leitura de novelas românticas; o sedutor, Basílio, primo com quem Luísa namorou na sua tenra juventude e que agora, em coincidência temporal com a partida de Jorge, regressa a Lisboa depois de ter enriquecido no Brasil, compondo de si mesmo uma imagem em que a elegância parisiense se prolonga na experiência de viagens exóticas e relações requintadas. Aos olhos do leitor, porém, o que Basílio revela de si mesmo é a frieza e o cínico calculismo presentes no processo de sedução a que se entrega. Inteiramente manipulada pela experiência do primo, Luísa não consegue resistir ao que julga ser o amor renascido do passado, e o adultério consuma-se. Mas o suposto amor bem cedo se mostra uma ilusão, anunciando o desfecho a que naturalmente conduziria a saciedade de Basílio, bem como a deceção de Luísa. A existência de umas cartas comprometedoras na posse da maléfica Juliana, a criada que as roubara, precipita o fim do que estava já condenado ao fracasso: satisfeito o seu capricho e incomodado com a vulgaridade das cartas roubadas, Basílio parte para Paris, deixando Luísa desamparada e sujeita à cruel chantagem que sobre ela passa a exercer Juliana. Embora a situação se resolva, por fim, mediante a intervenção de um velho amigo de Jorge, Luísa adoece, debilitada pelo sofrimento e pelas grandes comoções, e morre depois de saber que o marido conhece o segredo da sua traição.

Antes de ser uma personagem de ficção, Luísa, ainda sem nome, habitou em textos de registo não ficcional, onde Eça de Queirós, levado pelo impulso reformista próprio do realismo, apontou com veemência os vícios que o seu olhar encontrava na sociedade portuguesa de então, concedendo um particular relevo à educação feminina, em íntima articulação com a prática do adultério. Entre esses textos estão os que escreveu para As Farpas. Aí, dedicou Eça muitas páginas ao desenho exaustivo da burguesa nacional, fatalmente determinada, no seu comportamento, por uma educação errada e pelas circunstâncias da sua condição de mulher. Quando, poucos anos mais tarde, resolveu atribuir uma forma literária às teses anteriormente defendidas, a personagem de que precisava estava praticamente pronta. Restava apenas dar-lhe um nome e, com isso, uma individualidade, dar-lhe um corpo e um cenário para se mover, alguns comparsas com quem pudesse interagir e, por fim, criar os lances de uma ação que a revelasse. Assim surge Luísa, concentrando em si as características definidoras da “burguesinha da Baixa”, segundo as próprias palavras de Eça em carta a Teófilo Braga. A representatividade social desta forma atribuída à personagem aproxima-a da categoria do tipo, do qual se espera uma conduta tão previsível, quanto é previsível a ação que se esboça desde as primeiras páginas do romance.

Apesar do título em que figura o nome de Basílio – mas também uma relação de parentesco que remete para um outro ou, neste caso, uma outra – é Luísa que, desde o início, se afirma como personagem principal, devido ao olhar atento de um narrador que raramente a perde de vista: descreve-a fisicamente, nota-lhe os movimentos do corpo e as expressões faciais, regista as imagens que os outros dela possuem e as reações que o seu comportamento lhes provoca; presta atenção ao espaço asfixiante que a rodeia – a casa, o bairro e a cidade; por último, e na qualidade de narrador omnisciente, tem um acesso privilegiado à consciência da personagem – imaginário, memórias, emoções, sentimentos e, facto importante, às reflexões acerca de si mesma e do mundo que habita.

Dando-lhe vida através das estratégias enumeradas, raros são os momentos em que o narrador se manifesta diretamente acerca da sua personagem. Mas a preocupação de lisibilidade, a que o Realismo foi tão sensível, leva-o, por vezes, a recorrer a comparações – “O terror permanente amolecera-lhe o orgulho como a lenta infiltração da água faz a uma parede” (Queirós, s. d.: 286) –, a considerações com um tom semelhante ao da máxima – “Porque estava num daqueles momentos em que os temperamentos sensíveis têm impulsos indomáveis; há uma delícia colérica em espedaçar os deveres e as conveniências; e a alma procura sofregamente o mal com estremecimentos de sensualidade” (240) – ou a referir-se explicitamente aos traços do seu caráter – “E do fundo da sua natureza de preguiçosa vinha-lhe uma indefinida indignação contra Jorge, contra Basílio, contra os sentimentos, contra os deveres, contra tudo o que a fazia agitar-se e sofrer” (122).

São poucos, repita-se, os momentos em que a palavra judiciosa do narrador se sobrepõe ao olhar sob o qual a personagem se revela. O que ocorre a partir do retrato que o narrador desenha logo no início da narrativa: não um retrato exaustivo, mas apenas alguns traços a que voltará, sempre que se referir à beleza de Luísa, e nos quais é possível perceber os indícios de um temperamento: “…o cabelo louro um pouco desmanchado, com um tom seco do calor do travesseiro, enrolava-se, torcido no alto da cabeça pequenina, de perfil bonito; a sua pele tinha a brancura tenra e láctea das louras: com o cotovelo encostado à mesa acariciava a orelha, e, no movimento lento e suave dos seus dedos, dois anéis de rubis miudinhos davam cintilações escarlates” (11). Esta é a primeira imagem da mulher bonita, jovem e delicada, que o recurso aos diminutivos frequentemente sublinha: a pele branca e fina do seu rosto muitas vezes se tornará pálida ou vermelha, consoante as emoções do momento; a atitude reveladora da sensualidade que a caracteriza abre-lhe o caminho ao irresistível prazer de se sentir desejada; a suavidade dos seus movimentos estende-se ao seu modo de ser e de estar, ganhando os contornos da fraqueza e da indecisão nos momentos mais dramáticos do seu percurso. Um percurso que, nas suas reflexões, Luísa não sabe explicar a si mesma, embora descubra “que o amor é essencialmente perecível, e na hora em que nasce começa a morrer” (225).

A tese sobre o adultério poderá não ficar abalada por esta visão do amor. Mas a personagem feminina, que em meados do século XIX afirma a existência da sua sexualidade, ultrapassa decerto a qualidade do tipo ao serviço da moral comum. Sobretudo quando denuncia a iniquidade das consequências que daí resultam: “Tinham palpitado no mesmo amor, tinham cometido a mesma culpa. – Ele partia alegre, levando as recordações romanescas da aventura: ela ficava, nas amarguras permanentes do erro. E assim era o mundo!” (267).

Em 1922, Luísa transcende, pela primeira vez, os limites das páginas literárias onde até então vivera: Georges Pallu realiza o filme com o mesmo nome do romance – O primo Basílio – e escolhe Amélia Rey Colaço para o papel da protagonista (estreia: 1923). Ainda em Portugal, António Lopes Ribeiro procede a uma nova transposição do romance para o cinema, em 1959, cabendo desta vez o papel de Luísa à atriz francesa Danik Patisson. Em 1988, a história de Luísa foi alvo de uma minissérie brasileira da TV Globo. Daniel Filho, que a dirigiu, voltou ao romance de Eça de Queirós em 2007 e sobre ele realizou mais um filme. Giulia Gam, no primeiro caso, e Débora Falabella, no segundo, fizeram reviver a personagem. Logo no ano da sua publicação, em 1878, O primo Basílio passou para os palcos do teatro no Brasil, o mesmo vindo a suceder em Portugal, mas só em 1916. Fora do espaço da língua portuguesa, devem registar-se duas adaptações para o cinema e duas outras para a televisão: neste último caso, no México, em 1993 (teleteatro de um só episódio), e na Alemanha, em 1969. Ainda no México, surge uma adaptação ao cinema em 1935, e dez anos mais tarde, na Argentina, o romance de Eça de Queirós dá origem ao filme com o título El DeseoO primo Basílio foi adaptado ao bailado, com coreografia de Fernando Duarte (Danças em diálogos).

 

Referência

QUEIRÓS, Eça de (s.d.). O primo Bazilio. Episódio doméstico. Lisboa: Livros do Brasil.

[publicado a 22-08-2016]

Maria do Rosário Cunha