Nuno Miguel, personagem de Gente Feliz comLágrimas (1988), de João de Melo, é a principal voz entre as três que narram suas memórias dolorosas de infância. De família açoriana que emigra da Ilha de S. Miguel em busca de uma vida melhor, como seus irmãos, Maria Amélia, obrigada a ficar em casa cuidando dos outros nove irmãos, e Luís Miguel, Nuno Miguel expõe a violência sofrida na infância; forçado pelos pais a trabalhar exaustivamente, sendo maltratado e passando por toda sorte de privação, precisa amadurecer muito cedo, carregando estes traumas para a vida adulta.
Por ser o gêmeo menor – Carlos, o outro gêmeo, sobreviveu apenas quatro semanas -, Nuno Miguel cresceu frágil, magro, de pele clara e com os olhos azuis da mãe. Por ser diferente do pai e dos irmãos, o pai não o poupa, acreditando que ele era um fardo para a família. Aos dez anos de idade, é enviado pelo pai para um seminário em Lisboa, prematuramente torna-se consciente de que dali para a frente estará por conta própria, e entende que o homem de óculos escuros que vem até ele está “a mando do papá, com ordem expressa para me tornar padre depressa, regressar aos Açores” (Melo, 2013: 202). Dolorosamente compreende que ia “à procura de sua estrela, mas não lhe tinham ensinado o céu onde devia encontrá-la” (76).
A despedida do pai foi tão seca quanto sempre fora no trato cotidiano com os filhos, “nunca tivera jeito para a ternura, por isso mantinha o mesmo tom imperativo para lhe pedir que comesse alguma coisa e parasse de soluçar: " – Psst, ó pequeno! Não se chora, homem. E assoa-me esse nariz para o chão!” (77). E a lembrança que fica do momento em que, já no navio, ele olha para o pai no cais era de seu corpo “um pouco torcido e aparentemente indiferente ao destino do filho” (78).
O lugar que habitavam era descrito como “um presídio” (44) e, para Nuno Miguel, a grande ironia de sua vida era “a casa” (49), o espaço estava muito longe de ser acolhedor e afetuoso; mesmo a figura materna não evoca nele uma lembrança amorosa: “Não havia mãe. A minha sempre foi uma mulher longínqua e de pouca opinião” (51). Nuno Miguel não gosta dos seus pés por lhe lembrarem do “chão sórdido dos currais” (52).
Descrito como “uma criança pensativa, sonhadora em excesso” (96), “com profundos e inesperados desejos de morrer” (180), para fugir à situação de violência, aceita o destino de ir para o seminário. Maria Amélia, também segue para um convento com a mesma intenção, no entanto, nenhum dos dois irmãos consegue realizar seus planos. Ambos continuam a sofrer humilhações e privações. A irmã desiste e vai ser enfermeira; ele é expulso do seminário, por se envolver com o movimento político revolucionário. Em pleno contexto da ditadura do Estado Novo, junta-se à oposição, decide ser professor e, tempos depois, consegue se tornar um escritor mais ou menos bem sucedido, e se afasta da família.
As memórias de Nuno Miguel transitam entre passado e presente e, entre uma e outra, oscilam memórias tristes e momentos de certa alegria: “As bofetadas abriam clareiras de corpos derrubados que se espalhavam pelo chão das salas de estudo como corolas de animais abatidos” (286). No seminário não era diferente: “Força, violência e exaustão, além do castigo de ir rezar durante as horas do recreio, educaram-no para o respeito e para o ódio” (288).
A reconciliação com os pais ocorre somente quando vai até Vancouver para ver a mãe agonizante. Lá encontra os irmãos, de quem pouco ou quase nada se lembra: “Não me lembro de os ter visto nascer, não me lembro como choravam ou sorriam” (312). Em visita ao túmulo do pai, sente sua memória como “uma nuvem perdida, e [que] vem de dentro para fora” (370); em sua mente, “o pai ficou para sempre sentado na sua vida, com os olhos embaciados por esse nevoeiro mudo e obstinado” (419).
Já com a mãe, o encontro desperta nele a recusa em revê-la como uma figura que em nada lembra a mulher de olhos azuis, os lindos cabelos, a pele branca e macia” (313). Por mais que o momento fosse de reencontro com o núcleo familiar, “Nuno procurou suster toda a emoção dentro de si. Prometeu que não ia nunca chorar sobre as lágrimas” (329), mas é inevitável não sentir como ele e os irmãos “se ressentem ainda duma inexplicável ausência de colo materno” (352).
Em sua jornada de vida, Nuno Miguel também fracassa no casamento com Marta, antiga paixão idealizada, e a felicidade fica, assim, condicionada à dor e ao sofrimento que o perseguirão. Herda a casa da família por vontade do pai, para onde retorna acompanhado por Rui Zinho, seu pseudônimo, e percebe que seus livros não foram lidos por ninguém de sua família, “e um escritor que não comece por ser lido por um único que seja dos membros da sua tribo será sempre o pior, o mais inútil de todos os escritores do mundo” (455). Incapaz de lidar com os traumas e a frustração de uma vida sem um propósito real para sua vida, Nuno Miguel morre ao peso das memórias e da persistente sensação do não pertencimento.
Gente Feliz com Lágrimas recebeu o Grande Prémio da Associação Portuguesa de Escritores 1989, um ano após sua primeira publicação, além de outros prêmios. A obra também foi adaptada para o teatro por João Brites para o grupo “O Bando”, e para televisão, na minissérie dirigida por José Medeiros, composta por cinco episódios, trazendo o retrato da sociedade açoriana nas décadas de 1950 a 1980.
Referência:
MELO, João de (2013). Gente Feliz com Lágrimas. Lisboa: Pub. D. Quixote.
[publicado a 27-7-2025]