• Precisa de ajuda para encontrar algum conteúdo?

Dona Genciana

Dona-Genciana-por-Estrela-Novais.jpg
Autor: Estrela Novais, em Dona Genciana

Dona Genciana (José Rodrigues Miguéis, Saudades para Dona Genciana)

          Personagem principal de Saudades para Dona Genciana, conto de José Rodrigues Miguéis datado de 1956.

        No início do relato, Dona Genciana aparece envolta em algum mistério: mãe solteira, que passava os dias à janela e sem fontes de rendimento visíveis, a única coisa certa é que tinha muitas dívidas. O seu retrato é descrito de maneira discreta, com ênfase nas rugas e no olhar doce e cansado, que parece carregar o peso de uma vida resiliente e repleta de dificuldades. Mulher marcada pela simplicidade e pela solidão, é conhecida na vizinhança pela sua simpatia e afabilidade. Efetivamente, era “muito dada e bondosa, a todos correspondia: via-se perfeitamente que não tinha malícia nem preferências. Fez assim muitas amizades, uma popularidade local” (Miguéis, 1959: 265). O narrador era fascinado por ela – “desejei-a muito, sonhando-a duma sensualidade bíblica” (266), mas, simultaneamente, sentia-se intimidado, “tinha-lhe medo” (266). Porém, a vida não é fácil para esta personagem. Os anos vão passando e trazem a perda de dois filhos, apesar de um casamento tardio, que, num primeiro momento, foi alvo de crítica por parte do narrador, visto ocorrer durante um período de luto e pelo facto de ela afirmar que o sargento Cerejo era o noivo da sua filha, a Mimi, que estava doente: “Daí a poucos meses estavam casados. A Dona Genciana e o Cerejo, homem de Deus! Cerimónia, simples, recatada, como convinha nestas circunstâncias” (278).

        Findo o luto, a vida voltava à normalidade e a casa de Dona Genciana, numa tentativa de mitigar a solidão, tinha as portas abertas aos amigos até altas horas da madrugada. Estas reuniões eram famosas na vizinhança: “Recebia muitos amigos e algumas amigas, sempre de noite. Riam e folgavam até altas horas” (270). Até que o ciclo da vida se repete e Dona Genciana também morre, vítima de doença. Mais tarde, morre o seu último filho e assim terminou a sua família: “A raça da Dona Genciana estava extinta” (294).

        Fica a história de uma mulher de hábitos simples, cujas memórias e saudades ocupam grande parte dos dias, especialmente após a perda de pessoas queridas. Dona Genciana vive rodeada de lembranças e sente falta do passado, pois o bairro onde mora, antes cheio de vida, transformou-se num espaço de solidão, refletindo, assim, as mudanças que ela mesma sente e vivencia. A sua generosidade e doçura são evidentes, especialmente na forma como trata os vizinhos e os mais jovens, servindo de modelo de paciência e de bondade, o que deixa um impacto duradouro em todos aqueles que a conhecem, sendo esta, por isso, uma personagem que evoca o apego ao passado.

        Saudades para Dona Genciana remete-nos para o passado de uma Lisboa mítica do início do século XX, tendo como microespaço uma avenida que acolhe vida e testemunha o passar do tempo, com especial enfoque nas lutas e nos sonhos de uma senhora que, ao longo dos anos, assiste a mudanças e a perdas, tanto na sociedade como no seio da sua família. Este conto, nas palavras de Teresa Martins Marques, afigura-se “um emblemático microcosmos do imaginário da Lisboa migueisiana, enquanto complexo espaço que se revela claustrofóbico, simultaneamente, prendendo e incitando à evasão. Espaço construído pela memória superlativa do narrador que tenta re(a)ver o seu passado mas também reconstruir uma memória coletiva” (Marques, 2006: 215). Desta forma, o narrador de primeira pessoa rememora outras eras, recorda figuras e acontecimentos que fizeram parte da sua história e assim surge Dona Genciana: “Há destas mulheres que se diria terem nascido para uma existência sedentária, de intimidade e contemplação, no harém, ou na família querendo Deus. Vistas na rua ninguém dá nada por elas: o andar apressado e desgracioso, as formas transbordantes, o vestido antiquado e de mau gosto… são como peixes fora de água” (264).

        Ao longo do relato, José Rodrigues Miguéis explora temas como a nostalgia, o envelhecimento e a finitude da vida. A história é contada através de uma memória enriquecida com reflexões e de um olhar que observa com melancolia as mudanças que o rodeiam.

      O conto Saudades para Dona Genciana deu lugar a uma adaptação cinematográfica, em 1985, com realização de Eduardo Geada, responsável também pelo argumento, juntamente com Helder Costa e Manuel Machado da Luz.


                     Referências:

        MIGUÉIS, José Rodrigues (1959). “Saudades para Dona Genciana”, in Léah e outras histórias. Lisboa: Estúdios Cor, pp. 257-296.

       MARQUES, Teresa Martins (2006). “Leitura”, in Maria Isabel Rocheta e Serafina Martins (coords.), Conto Português. [Séculos XIX-XX]. Antologia Crítica. Porto: Edições Caixotim, pp. 213-227.

[Publicado a 16.02.2025]

Marta Luísa Pires Perpétua