Protagonista d’A Árvore das Palavras, de Teolinda Gersão, a jovem Gita é também a narradora principal do romance, pois a autora constrói grande parte da narrativa supostamente a partir da sua voz e sob a sua perspetiva. Assim acontece na primeira e na terceira parte do romance, ao passo que, na segunda parte, a perspetiva utilizada é a sobretudo a de Amélia, sua mãe. Predomina em todo o romance uma cosmovisão feminina dos espaços e dos ambientes e a perspetiva de Gita revela o seu tipo intuitivo. Na primeira parte, o leitor acompanha as recordações do tempo de criança de Gita, bem como as suas reflexões sobre o seu agregado familiar e o espaço onde se movimenta. A par da importância concedida à personagem, a categoria do espaço ganha também grande relevo, uma vez que a narrativa é em grande parte estruturada a partir do olhar de Gita sobre o espaço que a rodeia: a cidade de Lourenço Marques, antes da independência de Moçambique, num tempo anterior à atual designação de Maputo. A capital emerge, então, como cronótopo principal do romance. Enquanto criança, Gita percebe o seu pequeno mundo dividido em dois: por um lado, as divisões da casa dominadas por sua mãe Amélia, e, em especial, o quarto onde ela está sempre a costurar; por outro lado, a cozinha e o quintal preenchidos pela alegria de Lóia, sua ama negra, e por Orquídea, sua irmã de leite. De um lado, a severidade e os medos do paludismo, da contaminação; do outro o bem-estar, o calor, o cheiro das comidas, dos animas e da quente terra africana.
O leitor vai seguindo o crescimento de Gita ao ritmo de certos episódios e situações que ela própria narra, mostrando diversos ambientes da cidade de Lourenço Marques. O seu pai Laureano representa o colono integrado, aquele que se contenta com a mediania assegurada pelo seu pequeno emprego de funcionário e que usufrui do que o rodeia. Gita acompanha o pai e os amigos que gostam de ir à praia, que se encontram em cafés e que combinam piqueniques e passeios. Em contraponto, Gita tem dificuldade em compreender o desdém de Amélia relativamente ao nível de vida da sua família pequeno-burguesa. Na verdade, quando respondera, da metrópole, ao anúncio do jornal de Laureano para o contrato matrimonial, Amélia sonhara com uma mudança de estatuto e ambicionara uma vida social mais desafogada e confortável e sobretudo mais donairosa e vistosa. A primeira parte da narrativa avança escorada neste contraste a pouco e pouco consciencializado pela pequena Gita, que vê o pai como figura tranquilizadora, capaz de dar amor e carinho, numa cumplicidade que passa pelas inúmeras conversas na varanda, com Laureano simbolicamente na sua cadeira-aÌ€-aviador, deixando-se ambos impregnar de África, cujo torpor os embriagava e tomava conta deles. É através destes diálogos que Gita vem a saber — e com ela o leitor — que Laureano viera para Moçambique com dezoito anos, deixando para trás o trabalho no campo de um Portugal pobre e atrasado.
Tecido por diferentes vozes, “o romance é construído por planos que se intersetam, cada qual representando uma visão do mundo” (Sotelino, 2007: 224). Depois da mudança de ponto de vista para Amélia, na segunda parte, regressa-se, na terceira parte, à narração autodiegética de Gita. A protagonista é agora uma jovem de dezassete anos que narra os seus anos de formação e de aprendizagem conducentes à maturidade a que não faltam os ritos de afirmação sexual e a gradativa, ainda que tímida, consciencialização político-ideológica. A narrativa de cariz autobiográfico oscila entre a recordação do ambiente do liceu — com a profusão dos primeiros namoros, as saídas à noite para dançar, as deslocações no ferry de ligação a Katembe para ir à praia — e as descrições da família desestruturada com a partida da mãe, incapaz de ultrapassar a sua “tristeza ancestral” (p. 222). Neste período, o namoro com Ricardo dá a conhecer a Gita uma família de estrato social mais alto, cujos preconceitos sociais e raciais contrastam com a absorção ambiental de Laureano. Trata-se de uma família marcada pelo conflito, pelas discussões matrimoniais e pela inadaptação ao ambiente, emblematicamente representada pela morte prematura da mãe de Roberto. Por outro lado, Gita demora a compreender o significado da presença da empregada africana Rosário na sua casa, não entende como a sua ineficiência e a sua ociosidade são permitidas pelo pai até ao momento em que ela lhe anuncia que está grávida dele. Este elemento da intriga funciona como um ponto de viragem, pois, num impulso algo inconsciente e provocador, Gita resolve dizer que está grávida de Roberto, sem que tal seja verdade. É imediatamente rejeitada pelo namorado e proibida de o ver pelo pai dele, pois ambos consideram a relação como socialmente inferior e inadequada. O contraste entre as situações das duas jovens expõe a diversidade de relações sociais e coloniais. Por fim, sem condições de ganhar independência, se ficar na casa patena, apenas resta a Gita vir estudar para Portugal, sujeitando-se a uma posição subordinada na casa das tias e à vivência num país onde tudo era proibido: “Não se ia ao cinema com rapazes, porque podia parecer mal, de resto vivia-se no terror de parecer mal” (Gersão, 1997: 201).
No seu todo, o romance representa o período colonial já próximo do fim, vagamente sugerindo a década de 60 (dada a referência ao grupo musical “I Cinque di Roma”, que gravou o disco “At the Polana, L.M.”, em 1964), pois, no final da intriga, antes de partir para Portugal, Gita e o seu amigo Roberto conseguem escrever no muro da escola “Viva Moçambique. Independente”. Assim, Roberto e Laureano simbolizam os colonos integrados; Rodrigo e o pai, os colonos que não querem perder todos os seus privilégios; Lóia, na lógica subliminar da intriga, representa os africanos explorados, pois acaba por morrer de tuberculose, devido às insalubres condições de vida. Por fim, Gita simboliza a falta de oportunidade das mulheres para alcançarem a independência social, num país ainda colonialmente dominado por uma mentalidade conservadora, anacrónica e retrógrada.
Referências
GERSÃO, Teolinda (1997). A Árvore das Palavras. Lisboa: Publicações Dom Quixote.
SOTELINO, Karen C. Sherwood (2007), “Narrator versus Character Voice: Colonial Echoes in Teolinda Gersão’s A Árvore das Palavras”, in Hispania, vol. 90, nº 2 (May), pp. 224-233.
[Publicado a 11-02-2025]