João Mau-Tempo é uma das personagens centrais de Levantado do chão (1980), obra de José Saramago que retrata uma saga de camponeses alentejanos e assinala uma transição estilística na narração romanesca do escritor português, pela qual ele se tornaria conhecido.
Filho mais velho de Domingos Mau-Tempo e de Sara da Conceição, João Mau-Tempo aparece logo no início do romance, uma criança pequenina, pobre entre pobres, mas que se distingue pelo seu “olhar muito azul [...], como alguém que exilado se sentisse entre olhos escuros, castanhos” (Saramago, 2018: 16). Esta invulgar ênfase num traço próprio da caracterização da personagem serve, como costuma ser o caso em Saramago, para introduzir outros elementos da narrativa, nomeadamente o coletivo da família Mau-Tempo e a sua história de violência e resistência: “estes olhos azuis vindo da Germânia” atravessam de maneira intermitente “quatro séculos” de gerações, desde o dia em que uma jovem foi abusada por um “daqueles estrangeiros que viera com Lamberto Horques Alemão” (24). A construção coletiva e alegórica das personagens é recorrente e evidenciada nestes nomes e apelidos: todos os “donos do latifúndio” são Bertos (“Norberto, Alberto, Dagoberto”), todos os padres chamam-se Agamedes, há não poucos “tenentes Contentes”, etc. (56, 145-146).
Aprofundando os vários diálogos intertextuais do romance, a exemplo daquele estabelecido com os Buendía de Cien años de soledad (1967), de Gabriel García Márquez (Grünhagen, 2023), o emblemático apelido de João Mau-Tempo reforça em particular o fado pouco favorável que lhe foi historicamente reservado, pela condição social que é sua e de tantos outros que as figuras da sua família vêm representar: “esta família Mau-Tempo parece escolhida pelo destino para negros casos [...], se é em fome e misérias que estamos a pensar condoídos, qualquer outra família serviria” (68).
João Mau-Tempo assume protagonismo a partir do oitavo capítulo, na sequência da morte precoce do pai, que o obriga a tornar-se “o homem da casa” e, ainda criança, a começar a trabalhar (53). O seu estatuto de herói pouco habitual, mas representativo, chega a ser alvo de reflexões do narrador: “João Mau-Tempo não tem corpo para herói. É um pelém de dez anos retacos, um cavaco de gente que ainda olha as árvores mais como alpenduradas de ninhos do que como produtoras de cortiça, bolota ou azeitona. [...] Esta criança é apenas uma entre milheiros, todas iguais, todas sofredoras, todas ignorantes do mal que fizeram para merecerem tal castigo” (58).
A passagem para a vida adulta é rápida, como o é a descrição de alguns dos principais acontecimentos da sua vida: o casamento com Faustina, o nascimento dos filhos António, Gracinda e Amélia (93). A evolução da personagem estará sobretudo relacionada com a sua tomada de consciência crítica e política, impulsionada pelos papéis que recebe às escondidas e pelas reuniões clandestinas em que participa com Sigismundo. João Mau-Tempo acaba por tornar-se uma figura-chave da revolta do latifúndio a que pertence e por cuja transformação luta; ele assume a liderança de uma greve de trabalhadores (143-172), é detido em mais de uma ocasião e, considerado “comunista [...], com título de perigoso” (148-149), sofre tortura em Caxias, “onde esteve seis meses, [...] fez a estátua setenta e duas horas e foi espancado” (p. 276-277).
Ao longo de todo o romance, João é quase sempre designado Mau-Tempo, figura metonímica de uma coletividade camponesa marcada pelo sacrifício, acentuado pela estrutura épica, pelas incursões neorrealistas (Cerdeira, 2000, 101-113) e pelos diálogos bíblicos do romance: “deste crucificado que aqui vai ninguém fala” (Saramago, 2018: 82).
No microcosmo familiar, João Mau-Tempo destaca-se como personagem intermédia que faz a passagem entre diferentes gerações, que consegue dar passos além daqueles que foram possíveis para os seus pais, no início do século XX, entre a chamada Primeira República e o salazarismo, e que batalha pela libertação dos seus filhos e da sua neta. É nela, Maria Adelaide Espada, que ele pensa ao partir, com sessenta e sete anos (363-369), orgulhoso daquela menina que herda os seus olhos azuis, mas que recebe o apelido mais auspicioso do pai, levantada do chão, como os seus, graças aos muitos movimentos de luta dos trabalhadores que culminam na Revolução dos Cravos e nas primeiras ocupações de terras no Alentejo. É este o ponto de chegada do romance e do arco narrativo de João Mau-Tempo, que caminha, invisível, com “os vivos e os mortos” “neste dia levantado e principal” (390).
A força da narrativa de libertação de Levantado do chão é particularmente destacada na receção do romance, a exemplo da gravura de Miguel Januário dedicada à Gracinda Mau-Tempo, no âmbito da iniciativa Mulheres Saramaguianas.
Referências
CERDEIRA, Teresa Cristina (2000). O avesso do bordado. Lisboa: Caminho.
GRÜNHAGEN, Sara (2023). « Une lettre que l’on envoie au loin : José Saramago et Gabriel García Márquez ». Reflexos, 7.
SARAMAGO, José ([1980] 2018). Levantado do chão. 21. ed. Porto: Porto Editora.
[publicado a 15-01-2025]