Protagonista do romance O Susto (1958), José Maria Midões é a (re)figuração à clef de Teixeira de Pascoaes. António Feijó escreve no prefácio da edição de 2019 que o romance é “a anatomia da admiração de Agustina Bessa-Luís pela figura de Teixeira de Pascoaes” (14).
A polémica que se estabeleceu através de uma carta de João Teixeira de Vasconcelos, irmão do poeta, no Suplemento Literário do Jornal de Notícias de 15 de janeiro 1959 – “Carta aberta à escritora Agustina Bessa-Luís” –, demonstra sobremaneira como José Midões é, na verdade, uma refiguração e uma sobrevida de Teixeira de Pascoaes.
Se o poeta do Saudosismo viveu em Amarante, em São João de Gatão, José Midões, por sua vez, vive na Casa da Obra, na aldeia de Adriços, entre o Marão e o Douro: “A aldeia de Adriços, com os seus charcos barrentos, a igrejinha em ruínas, um calor de terras de Ur (…), era toda ela deveras bastante herética em coisas de urbanização. Via-se dali o dente rombo e nevoento do Marão, e toda a serrania calva e solitária tinha um ar de garra encolhida sobre a grande província agreste e, no entanto, sensível” (Bessa-Luís, 2019: 18).
Partindo daí, José Midões está destinado a grandes feitos, demonstrando uma sensibilidade exacerbada, capaz de sentir o que os outros não sentiam: “Tinha feito oito anos e andava na escola, pequeno mundo de cartilha (…) que ele odiava. Se o alfabeto tivesse corpo e sangue, estraçalhava-o com os dentes, para poder correr às suas estátuas de reis que criara para ele só nos penedos (…). Explorando esse pequeno cemitério de aldeia, passando muito tempo de volta dos túmulos onde secavam os ramos e o vento fazia em farrapo o papel de luto, José Maria criou os primeiros versos (…), se chovia, aproximava-se das janelas e, com uma ternura íntima e sensual, olhava pela cortina de água os montes e os lugares recolhidos na névoa – versos rápidos, imagens em que a cor fulgurava como uma sensação, corriam-lhe no pensamento” (37, 39 e 48, respetivamente).
A poesia nasce através da experiência da criança no meio da paisagem, ativando o espírito e o imaginário do lugar. Midões tem já em si o amor pelas coisas simples e pela contemplação, mostrando-se observador.
Se, por um lado, Agustina realça um destino a cumprir-se desde tenra idade, por outro, aproveita para mostrar a personagem na sua humanidade efetiva, comum mortal, estranho e esquisito aos olhos de alguns parentes: “Quando cumpriu sete anos, tia Bárbara (…) disse que José Maria parecia ter «um raminho». (…) António Midões proibiu o filho de se isolar dos irmãos e de preferir as divagações tranquilas e o estudo desordenado que fazia pelas bibliotecas. (…) Justamente, tia Bárbara estava no segredo dos métodos encantatórios a que sujeitaram José Maria quando ele tinha pouco mais de sete anos, para esconjuro de certo espírito bobo que julgavam tê-lo tocado” (31).
As semelhanças entre Pascoaes e José Midões são óbvias, não só no uso da indumentária, o chapéu típico ou a boina, mas também quanto à face e à altura do poeta, baixo e de rosto duro: “Era um homem baixinho, com a candura arguta dos que se alimentam da humanidade inteira, devorando-a solidamente, e sem fastio, na sua solidão; usava um velhíssimo chapéu (…). Possuía mesmo uma cabeleira escorrida e pálida, como a seda dos casulos; o rosto tinha, à primeira impressão – e depois notei isso sobretudo nos retratos –, uma dureza hermética e essa serenidade quase patibular que define os grandes ascetas e os que se temem a si próprios. «Aqui está um homem de paixões» – pensei” (23).
Posteriormente, dá-se uma nova refiguração da personagem, pondo em evidência os traços físicos que são aproveitados, como é normal na escrita agustiniana, para a divagação em jeito aforístico, criadora de imaginários e intimidades: “Era estreito de ombros, mas não frágil; os olhos grandes mostravam esse retraimento que pode ser tomado por timidez e consequente melancolia. As mãos curtas e escuras denunciavam uma intrepidez animal, uma vocação para o risco, uma sensualidade que a boca, muito bela, como dois traços no mármore, criada para exprimir o pensamento e a ordem dos sentimentos, desmentia. (...) Enquanto os irmãos corriam de alto a baixo as vinhas preparando armadilhas para os pintassilgos, José Maria desaparecia simplesmente, sem grande ímpeto de aventura, mas porque um caminho, uma lapa a transpor, lhe comunicavam a sensação amistosa duma solidão a cumprir” (28-29).
Figura tíbia no que diz respeito a paixões, o poeta acaba por desfazer o noivado com Angélica, aproveitando a narradora para revelar a perspetiva feminina sobre o protagonista: “pensava nas paternais palavras do noivo e naquele seu leve pedantismo solene; e achava-o insípido, incapaz de aventuras, mal informado das mulheres e tendo delas apenas uma opinião moralista, destinando a umas as canseiras, os filhos, os farrapos que duram dez anos…” (84).
É em Lisboa que conhecerá Álvaro Carmo, (re)figuração à clef de Fernando Pessoa. Ambos inauguram diálogos e discussões poéticas que farão lembrar aquilo que seria publicado nas Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação: “Talvez Caeiro proceda de Pascoaes; mas procede por oposição, por reação. Pascoaes virado do avesso, sem o tirar do lugar onde está, dá isto — Alberto Caeiro” (Pessoa, 1966: 343).
Assim como Tolstoi morreu na estação de Astapovo, longe do lar, o Pascoaes de Agustina morre na casa de um jornaleiro perto do Marão, depois de uma penosa viagem de camioneta (224).
O Susto é o testemunho do enlevo de Agustina por Teixeira de Pascoaes, dando novo fôlego e sobrevida à figura do “Orfeu das névoas”, revelando, também, a importância da relação entre Pascoaes e Pessoa.
De realçar, como exemplo acabado da figuração da personagem em Agustina, a resposta que a escritora redige à carta aberta de João Teixeira de Vasconcelos: “com as figuras mitológicas dos meus livros não se meta, nem que se trate do leão da Nemeia, do touro de Creta, das hidras múltiplas de não sei que terra; às vezes eu própria estou por baixo da pele desses animais, e arranho, e escorneio, e lanço veneno. Isso é comigo e com todo o mundo. Consigo e com a causa de Pascoaes em particular, nunca o é” (1959).
Referências
Bessa-Luís, Agustina. “Ao escritor João Teixeira de Vasconcelos”, in: Suplemento Literário do Jornal de Notícias, 22 de janeiro de 1959.
Besa-Luís, Agustina (2019). O Susto. 3ª edição. Prefácio de António M. Feijó. Lisboa: Relógio D’Água.
Pessoa, Fernando (1966). Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação. (Textos estabelecidos por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho). Lisboa: Ática.
[publicado a 23-12-2024]