Em Novos Contos da Montanha, publicado em 1944, Miguel Torga (1907-1995) apresenta o Alma-Grande, personagem inspirada na lenda do “abafador”, figura que, no tempo dos Cristãos Novos, tinha a incumbência de abreviar a vida dos judeus moribundos, a fim de evitar que confessassem seu credo na hora da morte.
A personagem vive em Riba Dal, conhecida como “terra de judeus” (Torga: 1996: 17), e logo no início da narrativa o narrador lhe dá cores sinistras, de modo a criar uma imagem tenebrosa para o leitor: “Alto, mal encarado, de nariz adunco” (17), sua presença desencadeava um sentimento paradoxal de terror e alívio, “atravessava impávido e silencioso [...] esperava impacientemente o último alento do agonizante, metia-se pelo quarto dentro, fechava a porta, e pouco depois saía com uma paz no rosto” (18).
Quando Isaac, um dos moradores dali, adoece e seu fim já se prevê, coube ao jovem Abel, seu filho, a tarefa de ir buscar o Alma-Grande, sem saber exatamente para quê. Em sua inocência de criança, não supõe a missão macabra do “abafador”, e seguem os dois até à casa do moribundo, com o Alma-Grande “a aceitar aquele destino de abreviar a morte como um rio aceita o seu movimento” (19).
Já na casa, trata logo de cumprir seu papel, e “atrás dos seus passos lentos e pesados pelo corredor ficava uma angústia calada, com a respiração suspensa” (19). Mais do que qualquer outro, o próprio Alma-Grande acreditava em sua missão, mostrando-se “insensível à profundidade dos mistérios da vida, [...] o seu papel não era olhar; era ir inteiro com as mãos ao pescoço” (20).
No entanto, com Isaac houve um complicador: uma testemunha ocular – Abel. Diante do olhar da criança, hesita. Aliado a isso, também a resistência de Isaac “tiraram das mãos do Alma-Grande a força habitual” (22), e o abafador “olhara pela primeira vez a escuridão do seu poço” (23), e ele não consegue executar sua missão, deixando Isaac vivo.
Depois do que se aconteceu, com o passar dos dias, o Alma-Grande vê-se na mira de uma luta silenciosa: os olhos vingativos de Isaac sempre à sua espreita; o olhar inocente e inquisidor de Abel; e o seu próprio de culpa. Por fim, a ânsia de vingança de Isaac vence e embosca o abafador que, sem se dar conta, logo estava a “estrebuchar no chão, de costas, com o pescoço apertado nas mãos do outro” (24).
O conto foi adaptado pela Fado Filmes para a RTP em Histórias da Montanha, com direção e roteiro de Luís Galvão Teles, e a personagem ganhou vida pela interpretação de João Pedro Bénard, no episódio que foi ao ar em 18 de setembro de 2023.
Referência
SAUDADE ASSOCIAÇÃO. Abafador, in: https://www.maresaudade.org/docs/EP/Abafador.pdf . (Acesso em 20 maio 2024).
TORGA, Miguel (1996). “O Alma-Grande”, in Novos Contos da Montanha. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, pp. 15-24.
[Publicado a 07-11-2024]