Ana de Peñalosa é uma figura medular das duas primeiras trilogias de Maria Gabriela Llansol, fundadora e cuidadora por excelência da comunidade que se forma no primeiro livro de “Geografia de Rebeldes”, O Livro das Comunidades (1977), e que se constitui na errância que atravessa posteriormente os três volumes que integram “O Litoral do Mundo”. Historicamente, o seu nome remete para a vida de San Juan de la Cruz: Ana de Peñalosa foi uma nobre castelhana responsável por cuidar da obra do poeta místico e de trasladar o seu corpo para o Mosteiro de Segóvia.
O termo figura, em detrimento de personagem, foi forjado pela própria Llansol, num movimento autorreflexivo em que o seu texto se dobra e se propõe criar “instrumentos de trabalho” para a sua leitura – movimento que se torna mais evidente a partir da publicação de Um Falcão no Punho – Diário I (1985) – e que abarca várias categorias ficcionais, num programático esforço crítico de (re)criação metaliterária. Neste caso, o termo figura pretende modelar, por um lado, o perfil não hierarquizado entre os seres que compõem o seu universo (podem ser humanos, animais, plantas, lugares, cenas) e, por outro, justificar a retirada estratégica de toda a caracterização tradicional relacionada com as personagens. As figuras não apresentam por isso uma caracterização, descrição física ou psicológica relevante, nem é possível deduzir ditas qualidades pela forma como atuam, já que a ação, no seu sentido convencional, é também secundária aqui. Elas permanecem sempre como “módulos, contornos, delineamentos” (Llansol, 2021: 130), mas é essa aparente falha que lhes permite interligarem-se e existir perenemente, muito além das suas limitações humanas. Se bem que o nome histórico, original ou ligeiramente modificado seja indispensável para a sua ancoragem cultural em muitos casos, essa segurança é no fundo uma ténue mas necessária amarra que permite visualizar pontos luminosos na paisagem da História europeia. É a partir deles e do seu caminho no texto, a restante vida, que as imagens de fulgor podem comunicar entre elas. Este referente, tal como se explica na contracapa de Ardente Texto Joshua, é apenas mais um ponto de partida que subtrai da saturação dos diferentes discursos legitimados pelo tempo – culturais, literários, biográficos, históricos – sobre dada personagem histórica uma “qualidade de evidência, de luminosidade, revelação i-mediata” (Eiras, 2005: 57) ou um “traço particular” que lhe permita “afirmar-se, neste projeto humanizador da história, contra as grandes narrativas do poder” (Barrento, 2011: 91). A modéstia na caracterização é o que potencia a intensidade destas “vibrações” que constituem as figuras, que as autoriza a fundirem-se umas nas noutras, sem que a sua identidade ontológica seja posta em causa ou sem emaranhar-se em caminhos do fantástico, do maravilhoso ou do inverosímil. Tudo funciona neste universo através destes “nós construtivos”, ocultos à lógica narrativa, interiores, viscerais na sua espiritualidade, possibilitando uma figura que “pre-vê, na memória de todos os seus percursos em linha e em rede, onde encontrar coincidências de vibração” (Joaquim, 1996: 193).
Neste sentido, Ana de Peñalosa é a primeira grande figura do universo llansoliano, cuja apresentação constitui, por si só, um programa de escrita da autora: no “Lugar 2” a sua biografia surge em colunas, intercalada com um segundo texto. Para seguir a sua apresentação de um modo sequencial, o leitor deve saltar a coluna seguinte, que contém o comentário, provocando uma subversão na leitura tradicional. Esta formulação gráfica não é inocente: simula o gesto do comentário, da escrita como consequência imediata, material, quase diríamos, física, da leitura. Este gesto de escrever na plena posse das suas faculdades de leitura é antes de mais um ato de cuidado, de hospitalidade e de atenção para com o outro, uma praxis poética seguida por Llansol, o que faz de Ana de Peñalosa a figura em que a narradora-autora mais frequentemente se projeta. As suas vozes confundem-se deliberadamente, pois a ausência programada dos marcadores textuais de enunciação contribuiu de forma decisiva para o desmoronamento dos códigos de leitura convencionais. Neste âmbito, Ana de Peñalosa é vital nas diferentes decisões textuais que se foram tomando: n’O Livro das Comunidades, ela faz nascer São João da Cruz através do ato de copiar o seu texto, faz aparecer Nietzsche através das cartas que lhe escreve; Tomás Muntzer é “introduzido por Ana de Peñalosa” (Llansol, 1999: 37). Nem sempre é obrigatório um ato de escrita já que Ana de Peñalosa “não amava os livros, amava a fonte de energia visível que eles constituem quando descobria imagens” (Llansol, 1999: 73). No entanto, as muitas figuras que vão surgindo na comunidade dos “rebeldes” dependem da capacidade de Ana de Peñalosa expandir a sua casa para acolhê-los e de mover a casa para abrigá-los, já que o espaço doméstico é o habitat próprio para todos os encontros.
Depois de criada a comunidade, Ana de Peñalosa alimenta o fogo que gera as máquinas da batalha em A Restante Vida (1983), livro onde é especialmente ativa em várias frentes “fala sem cessar, não é homem nem mulher, corre entre nós como um porco imundo” (Llansol, 2001: 65). Aqui, ela irá adotar para o texto alguns animais, como o peixe-Suso, e plantas, como Prinus-Tribola. À sua função de charneira, junta-se de forma mais evidente a de ponte, seja entre figuras e lugares, seja como narradora dominante, tanto da batalha perdida como da viagem que se segue, rumo a Portugal. É pela sua voz e escrita que se amaldiçoam os Príncipes, inclusive o seu marido Lourenço de Médicis, mesmo sabendo de antemão que hão de triunfar na batalha de Frankenhausen. Neste livro, “por virtude de muito amor” (39), ela é também Hadewijch, através da qual atravessa Contos do Mal Errante, sem nunca ser mencionada pelo seu nome. Pelo caminho, no último livro da 1ª trilogia, Na Casa de Julho e Agosto, assimila-se à Grande Dama dos movimentos beguinais, que, além da criação das regras da comunidade, é responsável pelo aparecimento de Luís M./Luís Comuns, urdido a partir de Luís de Camões.
Em Causa Amante, no Passo I assistimos ao “Nascimento de Ana de Peñalosa” (que terá sido o primeiro título provisório da segunda trilogia), e a sua figura, reencontrada em Úrsula – já que de uma a outra, “indo pelo tempo, era uma estação muito breve” (Llansol, 1996: 81) –, povoa a memória de todos. Ana de Peñalosa reside agora em Lisboa “num meio estado entre vir a envelhecer e envelhecer”, passeia pelos miradouros e pelas praças, por vezes participa em “acontecimentos autênticos ocorridos na cidade, (…) com a sua maneira tão suave de ver horizontes” (Llansol, 2001: 48). A sua posição altera-se: agora ela é objeto da narração, já que “o mundo criado por ela, e o iniciado, não a deixam; é uma questão de oportunidade” (Llansol, 1996: 14). Uma oportunidade para expandir a sua “compenetrada, (…) desritmada penetração de épocas” (Llansol, 2001: 71), no fundo, a técnica de sobreimpressão seguida por Llansol.
Ao ser ela a causa amante, procurada por outros, o seu dom de ubiquidade agiganta-se: tal como aparece n’O Livro das Comunidades, como se sempre tivesse estado “suspensa na página” (Llansol, 1999: 26), ela é, simultaneamente, percursora e destino de todas as outras figuras. O seu nascimento não se refere a um acontecimento civil mas ao seu surgimento como mecanismo textual de figura. Por essa razão, também a sua morte “é-lhe indiferente, não tem muito sentido” (Llansol, 2001: 71). Com Ana de Peñalosa, as determinações que nos norteiam, como a idade ou a morte, “tinham sido abolidas sem destino” (Llansol, 2009: 158). A sua voz tocará ainda Psalmodia, em Da Sebe ao Ser (1988), e chegará a figuras que habitam livros posteriores às trilogias: Myrian (Um beijo dado mais tarde), Anna Magdalena (Lisboaleipzig), a mulher de Paresceve, etc..
Embora muitas vezes se refira a outras figuras como “os seus filhos”, a sua maternidade dá-se pela gestação orgânica dos muitos textos que preservam a “vibração” de tais filhos. Mais do que uma essência, ela é “uma figura de companhia” (Llansol, 2021: 132) ao longo do texto. Ana de Peñalosa é, no fundo, a “vasta razão” (Llansol, 2010: 225) do universo figural da sua autora. O que não é estranho para uma mulher que só sabia fazer amor “pelos olhos e pela palavra”(Llansol, 1999: 11).
Referências
Barrento, João (2011). "Os filhos do nada: Rebeldes, visionários, iconoclastas". Em Europa em Sobreimpressão - Llansol e as dobras da história. Editado por João Barrento. Lisboa: Assírio e Alvim/Espaço Llansol: 89–112.
Eiras, Pedro (2005). Esquecer Fausto. Porto: Campo das Letras.
Joaquim, Augusto (1996). "Posfácio". Em Causa Amante, por Maria Gabriela Llansol, 2a, 165–211. 1. Lisboa: Relógio D’Água.
Llansol, Maria Gabriela. 1996. Causa Amante. 2.ª ed Lisboa: Relógio D’Água.
___ (1999). O Livro das Comunidades. Lisboa: Relógio D’Água.
___ (2001). A restante vida. Lisboa: Relógio D’Água.
___ (2009). Uma Data em Cada Mão - Livro das Horas I (Lovaina e Jodoigne, 1972-1977). Lisboa: Assírio e Alvim.
___ (2010). Um Arco Singular - Livro das Horas II (Jodoigne, 1977-1978). Lisboa: Assírio e Alvim.
___ (2021). Um Falcão no Punho - Diário I. Lisboa: Assírio e Alvim.
[publicado a 16-09-2024]