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Léah

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Autor: Capa da edição Estúdios Cor

Léah (José Rodrigues Miguéis, Léah e outras histórias)

Coprotagonista do conto homónimo redigido na primeira pessoa, num tom pessoal e intimista, muito próximo do registo epistolar.

A estratégia narrativa adotada no relato passa por desvendar gradualmente Léah, a partir do olhar do narrador-personagem, pois inicialmente o foco é contextualizar a ação e o ambiente em que ela decorre: a pensão da senhora Lambertin, em Bruxelas. Quem assume a narrativa é um hóspede, Monsieur Carlos, que conta a sua relação com uma camareira de nome bíblico. Léah é a sua destinatária e surge através de uma interpelação no contexto de um discurso reflexivo e confessional. Logo se percebe que o relacionamento entre os dois, para além de efémero, já terminara. Desta forma, todo o conto é analéptico e consiste num longo desabafo.

Léah é uma figura misteriosa que suscita curiosidade e provoca alguns ciúmes no narrador, mesmo antes de ele a conhecer. De origens humildes, “filha dum pescador-lavrador do Pas-de-Calais”, andou poucos anos na escola e era uma camareira dedicada e carinhosa, que passava horas à conversa com os restantes hóspedes, ultrapassando, assim, as suas funções profissionais, tornando-se confidente de vários. Monsieur Carlos habituou-se a ouvir aquela voz afável e animada, as gargalhadas; já a desejava, sem a conhecer. Um dia, perante o seu quarto por limpar, chama-a. Dá-se o primeiro encontro, ela revela-se-lhe: “pálida”, “olhos arregalados”, “redondos, límpidos, cinzentos”, “bonita, nova e séria”, boca “viva e carnuda”, “seios fortes e salientes”, pescoço “branco e solidamente afeiçoado”, cabelos “ondulados e dum louro queimado”, “rosada, fresca e reluzente”, “cintura estreita” (Miguéis, 1959:19). A primeira conversa revela sinceridade, espontaneidade e uma “intuição maternal”, pois Léah percebe o sofrimento e a solidão do seu interlocutor; o diálogo flui com muita naturalidade e o assunto é a vida dos restantes hóspedes. Léah, “numa voz macia e confidencial”, revela-se conhecedora e íntima de todos, mas de uma forma inocente e pura, apesar de ter sido alvo de juízos de valor pelas longas horas que passava fechada nos diversos quartos. Neste primeiro contacto, fala também da irmã, das condições de trabalho e do noivo, Ferdinand. Durante a conversa, a voz leve e jovial de quem conta trivialidades ganha profundidade e torna-se “dorida e confidencial”, ele estava no seu destino, ela aceita-o e dá-se a conhecer de uma forma despretensiosa, parecendo que a relação já durava há anos.

Os encontros sucedem-se. Léah torna-se íntima de Monsieur Carlos, fala da beleza da irmã, apresenta-a com um orgulho “quase materno”, chega a partilhar com ela aqueles momentos e nunca mostra ciúmes pela atenção que Monsieur Carlos lhe dispensava. Léah vive uma duplicidade amorosa, mantém o noivado e simultaneamente mostra interesse pelo hóspede.

Porém, nem tudo corre bem: a senhora Lambertin deixa de lhe pagar os salários. Ciente dos seus direitos, decide recorrer ao tribunal, faz greve, tenta que os hóspedes intercedam por ela, mas todas as medidas são infrutíferas e Léah decide abandonar a pensão. No meio de uma discussão, é desmascarada pela patroa que revela a Ferdinand a indiscrição de Léah. Contudo, acaba por ser ilibada da acusação e a vida segue o seu curso.

Léah ainda esteve algumas vezes com Monsieur Carlos, chegou a propor uma fuga romântica, mas, perante a cobardia do hóspede, o encanto foi-se perdendo, as longas conversas já não eram “suaves” e, com o tempo, “acasos, desencontros, afazeres se meteram de permeio”, até que o contacto passou de esporádico a inexistente. Cruzam-se na rua e a degradação de Léah é evidente (“pálida, vagarosa, malcuidada”; (41)); marcam, com insistência dela, um encontro mais tarde, no mesmo dia. A esperança renova-se; todavia ele não aparece.

Passam anos, Léah casa, tem um filho e recupera muito do que fora, aparece “fresca, vermelha, um quase nada mais cheia, bem vestida, mais mulher” (42).

Esta é uma figura feminina marcada pela verosimilhança: uma mulher simples que vive do fruto do seu trabalho, ama, trai, luta pelos seus direitos, sofre e, perante o desgosto, reconstrói a sua vida.

 

Referências

Miguéis, José Rodrigues (1959) – Léah e outras histórias. Lisboa: Editorial Estúdios Cor.

[publicado a 08-07-2024]

Marta Luísa Pires Perpétua