Julião, protagonista do conto “O leproso” (1944), de Miguel Torga (1907-1995), trabalha no campo, e é tratado como um igual por seus companheiros até o dia em que a súbita pronúncia da palavra “leproso”, proferida pela rapariga do Doiro que o acusa de ousadia, coloca a olho nu a evidência da doença que começa a se manifestar de maneira mais visível: “Ó meu leproso dos infernos!” (67).
No conto, a focalização em terceira pessoa apresenta a personagem apenas como Julião, e ao leitor não é dado conhecer seu sobrenome ou origem. Ao longo da narrativa, o narrador reporta-se a ele pelo nome próprio mas, quando a alcunha de “leproso” aparece, sempre se dá pela voz, direta ou indireta, das outras personagens.
Apesar de sentir os sinais há um tempo, quando começam a lhe crescer “na cara gomos de carne dura, insensível e vermelha” (68), e a partir do momento em que a doença de Julião é nomeada, a narrativa passa a ter outros tons: “E abruptamente, da noite para o dia, o Julião encontrou-se só, danado, excomungado, olhado como um inimigo repelente” (69). O comportamento de todos para com ele muda, e passam a vê-lo como pária naquela comunidade. A exclusão social não o afasta apenas dos amigos, mas também do trabalho, comprometendo seu sustento, obrigando-o a mendigar, o que o faz cair em profunda tristeza e desesperança, e “passava os dias deitado ao sol, numa aceitação mansa da condenação” (70). Mesmo magoado, teve de reconhecer que “seu mal pegava-se” (70); assim, torna-se apático e conformado com seu destino.
Tempos depois, aconselhado a não desistir da vida, vai a Sanfins à procura da cura, mas o doutor o “atendeu da janela” (71), não havia nada a ser feito, “nem falaram de remédios, nem de hospital, nem de nada” (71). Julião retorna a Loivos, onde pretende seguir com seus dias e aguardar a morte.
Antagonicamente a Loivos, que adota “uma instintiva solidariedade de defesa da tribo” (72), posto que Julião representa a mácula da cidade, os vilarejos vizinhos “recebiam-no caridosamente” (72), apesar de isso não significar sua aceitação, apenas alívio por ele não ser um conterrâneo.
No entanto, algo começou a mudar nele, e agora “nascia-lhe um maior apego à vida” (72), que o fez procurar por qualquer forma de ajuda, ao mesmo tempo em que começa a nutrir uma revolta contra Loivos e a todos do lugar, “ódio era o que lhe pedia hora a hora o coração, outrora limpo e generoso, e agora a empurrar um sangue podre e abjecto” (72).
Tempos depois, no momento em que vê seu corpo se deteriorar, e com sofreguidão assiste à própria morte em vida, quando alguns sinais ficam mais evidentes (“caíra-lhe há pouco o polegar direito, a cara, inchada, nodulosa e deformada”; 73), ouve falar que tomar banho de azeite cura a lepra. Agarrando-se à vida, junta seus parcos ganhos com a esmola e compra um cântaro de azeite, com ele enche o tanque da fonte da Nossa Senhora da Agonia, e entra com o que lhe restava da fé que tinha, deixando que “duas lágrimas rolassem vagarosamente dos olhos inflamados” (74).
Diante da tentativa frustrada de cura, Julião procura recuperar o dinheiro investido, colocando novamente o azeite no cântaro e vendendo-o para o vendeiro Nunes. Logo todo o azeite está na mesa dos moradores de Loivos. Descoberto seu plano de vingança, Julião passa a ser alvo de uma caçada desumana por parte dos moradores, movidos de “embriaguez de vingança e animalidade” (80), e termina encurralado nos matagais da Bouça, à mercê da crueldade de todos. Logo o fogo que atearam aos ramos secos chega até ele e, quando “a fogueira lhe apertou o garrote, deixou-se finalmente cair” (81).
Em 1975, “O leproso” foi transposto para o cinema por Sinde Filipe, no projeto “Histórias da Montanha”, de Luís Galvão Teles, composto em torno de cinco histórias baseadas em Contos da Montanha e Novos Contos da Montanha, de Miguel Torga.
Referência
TORGA, Miguel (1996). “O leproso”, in Novos contos da montanha. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 65-81.
[publicado a 15-01-2024]