Personagem principal do romance A Sibila (1954), de Agustina Bessa Luís. A ação do relato constrói-se em torno de Quina, filha de um casal minhoto cujas propriedades familiares — a Quinta da Vessada — são a sede do desenvolvimento da narrativa. A Sibila foi logo considerada um ponto de rutura radical em relação à produção literária da época (cf. Owen, 1998), e a protagonista uma figura de mística arquetípica, operando fora da hierarquia caraterística da sociedade rural machista portuguesa: Quina desafia normas da época, ao encarregar-se, após a morte do pai, da propriedade familiar que mantém e amplia, provocando a admiração e a inveja da sociedade local. Ao desenvolver poderes espirituais de vidente e curandeira, passa a ser referida pela designação de “sibila” (Bessa-Luís, 1997: 77) que deu o título ao romance. Em algumas ocasiões, como nas conversas transcritas em discurso direto entre Quina e a condessa Monteros, é chamada pelo seu nome formal completo, Joaquina Augusta (79; 80). Contrariamente a isto, para enfatizar a intimidade, um pretendente, Augusto, faz uso do diminutivo Quininha (84; 106). No decorrer da narrativa, aos 58 anos e com o acréscimo de propriedades e de riquezas, ganha o título de “dona” (136).
Em oposição à sua irmã mais velha, Justina (Estina), filha preferida da mãe Maria que a protege de trabalhos domésticos, de Quina é exigida desde cedo responsabilidade e trabalhos penosos (22; 32-33), apesar da repetida insistência do pai Francisco para que a mãe a deixe também brincar. Após o casamento da irmã, a cumplicidade entre Quina e o pai torna-se ainda mais evidente e este apoia-se cada vez mais no tato político da filha, a respeito de negócios e contratos; Quina, por sua vez, também exerce mais controlo e influência sobre a mãe. Progressivamente, intensifica-se o desprezo que Quina sente pelas mulheres ao seu redor cuja categoria julga deprimente e cuja condição luta por superar até chegar a ser “senhora absoluta dentro daquele pequeno reino de campos, moinhos” e “apontada como cabeça de família, conhecida na feira e no tribunal” (56; 99). Mantém-se solteira, recusando quaisquer propostas de casamento, pois considera os homens inferiores a ela; ao usufruir de uma época muito feliz na sua vida como rainha da casa da Vessada, conhecida e respeitada por fidalgos, dedica-se a engrandecer as suas propriedades e o seu prestígio.
Neste universo ficcional, a relação de Quina com a sobrinha Germa destaca-se pela sua importância interna à narrativa assim como a sua função na construção do romance: a ação do romance é uma retrospetiva da vida de Quina pelas lembranças de Germa que, desde o início, narra as suas memórias centradas na personagem da tia; junta-se-lhe um narrador omnisciente, tecendo-se assim uma narrativa elítica, eclética, por momentos fragmentada e digressiva (Cruz, 2016: 84). Desde a meninice de Germa, as duas compreendiam-se “bem demais” e “cada uma delas via na outra a sua própria personalidade” (Bessa-Luís, 1997: 102-103). Quina aconselha Germa a não casar e apesar de um ou outro momento de tensão entre elas, no seu testamento Quina indica-a como herdeira quase absoluta. Além da herança material, o posicionamento de Germa na casa da Vessada, no começo e no fim do romance, solteira e só, à imagem de Quina, mostra-a ponderando a sua missão de poder traduzir a voz da sibila, um “terrível, extenuante legado de aspiração humana” (251). Outra relação chave na narrativa ocorre entre Quina e o filho de um escudeiro que trabalhava ao serviço de um parente e que ela decide adotar: Custódio. Constrói-se então uma relação cheia de ambiguidades e bastante surpreendente, de afetividade dinâmica e transformante. Se, ao princípio, Quina sente pena do jovem que lhe pediu que o aceitasse como criado e faz dele o seu hortelão, aos poucos, Custódio, com o seu conhecimento de cortesias e a sua beleza, aprendeu depressa a dominá-la e caiu-lhe como um “anátema no coração” que se transforma numa devoção incompreensível, paralela à “humildade apaixonada” que ela dedicara a seu pai (154; 165). No seu testamento, Quina deixa a Custódio as duas propriedades que adquiriu depois da morte da mãe, apesar de ele a ter pressionado para que tudo lhe legasse.
A evolução de Quina ao longo da narrativa opera-se a vários níveis, indo do corporal ao espiritual e ao material. Na sua adolescência, foi acometida de uma síncope grave, dando passo a uma longa doença que a deixou acamada por mais de um ano. Quando melhora, contra todas as previsões, a doença deixa rastos e o estranho comportamento de Quina em gestos e palavras e as suas rezas incomuns tornam-se hábitos com origem no seu dom de vidente. A acumulação de riquezas e de estatuto social marcam a narrativa, indo em paralelo com a construção de uma reputação de sibila que Quina exerce até se cansar daquele convívio com fidalgas que acaba por enervá-la. As suas intervenções sibilinas eram-lhe necessárias enquanto precisava de aplauso, admiração e lisonja de outrem para ter fé e convicção, para depois as deixar, ao preferir o poder do silêncio no qual achava maior plenitude. No decorrer dos anos, o envelhecimento e o isolamento acompanham-na até à morte, debilitada por um inverno rigoroso e pelo passar dos anos.
O primeiro retrato físico de Quina é inserido na narrativa pelo discurso indireto de Germa a seu primo Bernardo Sanches quando ela “bruscamente (...) começou a falar de Quina” que nascera naquela mesma casa da Vessada, 76 anos antes. Quina é descrita de aspeto “pouco viável, roxa, moribunda” com uma mancha sépia no pulso esquerdo (9). O narrador omnisciente completa o retrato físico e moral de Quina em vários momentos da narrativa, caraterizando-a pela negativa: “não era bonita” (36). Herdou a pequena estatura de seu pai e os seus olhos, os hábitos noctâmbulos de sua mãe, e era capciosa nas suas falas, frívola, mentirosa, ambiciosa, palradora, verbosa e contrariadora. Dotada de poderes espirituais cujo potencial ela própria subestima, sempre aspirou a ser diferente dos outros, a rebater a opinião alheia, e achava-se “mais venerável” do que as suas forças sobrenaturais (90). Aos 40 anos, no auge do seu sucesso social, apesar de muito grisalha, não parece envelhecida, mas “apenas respeitável”, o que em muito lhe agradava ao preferir “honras feitas ao seu nome de proprietária” à “galanteria dedicada à mulher” (83). Pela comunidade que inveja a sua acumulação de riquezas, “foi alcunhada de desonesta” e na sua velhice, “além de bruxa, diziam-na avara” (89; 173). Uma das últimas caracterizações físicas chega ao leitor pela transcrição dos próprios pensamentos dela, achando-se “totalmente envelhecida, abatida e sem forças até para compor os bandós brancos do cabelo” (185). Dos aspetos misteriosos do romance, uma questão principal é a sexualidade de Quina que fica às escuras.
A personagem Sibila reaparece em outro texto de Bessa-Luís que junta, por um processo de “autointerpelação” (Lima, 2014), mulheres de três de seus romances, Três mulheres com máscara de ferro (escrito em 1998, publicado em 2014), sendo as outras duas Fanny, de Fanny Owen (1979), e Ema, de Vale Abraão (1991). A obra foi transposta para ópera com música de Eurico Carrapatoso em 2014 e encenada em outubro desse ano pelo Teatro Aberto, com Patrícia Quinta no papel da Sibila.
Referências
BESSA-LUÍS, Agustina ([1954] 1997). A Sibila. 21.ª ed., Lisboa: Guimarães Editores, LDA.
______ (2014). Três mulheres com máscara de ferro. Lisboa: Babel.
CRUZ, Louise Ribeiro da (2016). “A construção e o enaltecimento de personagens femininas em A Sibila, de Agustina Bessa-Luís.” RCL / Convergência Lusíada. 36: 77-93.
LIMA, Isabel Pires de (2014). “Um inédito de Agustina Bessa-Luís. Três mulheres com máscara de ferro: Cristalizações do feminino.” Posfácio. Colóquio / Letras. 187: set, 63-74.
OWEN, Hilary (1998). “Uma inconclusão superadora: A Machereyna Feminist Reading of A Sibila by Agustina Bessa Luís.” BHS. LXXV: 201-212.