A primeira adúltera queirosiana é Luísa, amante do capitão Rytmel, n’O mistério da estrada de Sintra. Ao contrário da sua posterior homónima d’O primo Basílio, esta é a obreira consciente do seu destino, teoriza sobre ele, escolhe o seu próprio castigo e escapa com vida da aventura.
Escrita por Ramalho e Eça, publicada como folhetim no Diário de Notícias e como romance epistolar em 1870, a obra será reescrita por Eça de Queirós em 1885. Entre as duas edições não há, contudo, grandes diferenças no estatuto, caracterização e evolução da protagonista (e também não na de 1894). A condessa é, desde o início, de fatura integralmente queirosiana. Trata-se da única figura feminina dotada por Eça do poder autodiegético e, com ele, de uma ideologia e de um estilo propriamente queirosianos.
Nunca lhe conheceremos nome de família, salvo o estrangeirado e enigmático título de “Condessa de W.”. Casada com um típico marido anódino, ocioso e bon vivant, cortês mas pouco subtil, Luísa, culta, inteligente, desenvolta apesar de educada num convento, vive elegantemente em Lisboa, recebendo numerosos amigos, entre os quais o excêntrico Fradique Mendes, todo investido ainda de dandismo satânico. Cosmopolita e viajada, a condessa goza de certa independência pessoal, mas parece ansiar por liberdade e sofre frequentemente de tédio. O conde convence a mulher e um primo desta, seu melhor amigo, a fazerem uma viagem terapêutica à ilha de Malta. Na escala em Gibraltar, conhecem um belo capitão inglês, Rytmel. Em breve a condessa e o capitão se apaixonam. Depois de terem ensaiado e desistido de uma fuga romântica num iate, a condessa e Rytmel encetam um adultério chique, que se prolonga em Paris e depois em Lisboa, onde se encontram clandestinamente numa casa arrendada para o efeito. É nessa casa que Luísa, atormentada pelos ciúmes, congemina adormecer Rytmel, para lhe revistar a carteira. Num transe fatal, a condessa, nervosa, ministra ao amante uma dose excessiva de ópio – e o capitão adormece para sempre. Desesperada, Luísa consegue, contudo, camuflar o involuntário homicídio com a ajuda de amigos, a quem por escrito explica pormenorizadamente toda a história, praticando um escrupuloso, longo e implacável exame de consciência. E entra para um convento muito austero, de onde não sairá mais.
O mistério da estrada de Sintra pretendeu, por dois modos, denunciar a indução romântica do adultério feminino: primeiro, através do exagero caricatural do subgénero folhetinesco, leitura favorita das mulheres sentimentais; depois, pela clara doutrinação realista-naturalista. Ambos os modos são ineficazes.
Caracterizada por dois narradores ideologicamente distintos, mas ambos deslumbrados por ela, a loura condessa exorbita largamente o modelo estereotipado da adúltera dos folhetins sentimentais, sem que a sua imagem se avilte ou polua de ridículo ou paródico. Para o seu primo, é uma espécie de mulher perfeita, a quem não faltam os atrativos do mistério e do físico nórdico: "Os seus olhos eram de um azul profundo como o da água do Mediterrâneo. Havia neles bastante império para poder domar o peito mais rebelde; e havia bastante meiguice e mistério, para que a alma fizesse o estranho sonho de se afogar naqueles olhos. (…) Os seus movimentos tinham aquela ondulação musical, que se imagina do nadar das sereias. De resto, simples e espirituosa" (Queirós, 2015: 184-5).
As orientações antirromânticas, intentando denunciar a inanidade da sedução erótica ilegítima, são desenvolvidas pela extensa autocrítica da própria condessa, cuja narração autodiegética explicitamente se constitui como “o auto de autópsia de um adultério” (325). Esta tese de teor naturalista é servida por um tom crítico e satírico, com ressaibos de ironia romântica, lirismo cuidadosamente contido e um alcance metaficcional. Sublinhando a sua exemplaridade didática, a narradora-personagem proclama: "Eu já não sou alguém. Não existo, não tenho individualidade. Não sou uma mulher viva, com nervos, com defeitos, com pudor. Sou um caso, um acontecimento, uma espécie de exemplo. (…) Não sou uma mulher, sou um romance" (333).
Denunciando a projeção feminina nas desmoralizadoras heroínas dos romances românticos, a condessa assume assim outra figuração ficcional típica: a da adúltera bovarística. Como narradora autodiegética, Luísa revela, porém, uma elevação moral e uma inteligência que objetivamente contradizem esse exemplo instrutivo. Não é a típica adúltera que diz ser – justamente porque o diz. A sua lucidez autocrítica não condiz com a alienação e inconsistência de caráter, típicas da personagem que diz representar. Adúltera atípica e até inverosímil, Luísa atinge uma dimensão absolutamente singular na galeria de personagens femininas de Eça de Queirós.
No filme de Jorge Paixão da Costa (2007), homónimo do romance, Luísa é interpretada por Bruna di Tullio.
Referências
QUEIRÓS, Eça de (2015). O mistério da estrada de Sintra. Cartas ao Diário de Notícias. Edição crítica por Ana Luísa Vilela. Lisboa: IN-CM.
[publicado a 16-07-2021]