O nome da personagem que dá título à novela de Miguel Torga, publicada pela primeira vez em 1943 e reeditada em 1985, quando substantivo abstrato, liga-se à sorte, destino, felicidade ou perigo. No caso do Senhor Ventura, há uma mescla dessas significações, uma vez que sua jornada épica ao longo da narrativa faz seu destino oscilar entre a sorte e o infortúnio. Além disso, o deslocamento é outra constante na vida do Senhor Ventura, que parte de Penedono para Lisboa, de Lisboa para Macau, de Macau para diversos pontos da China, de novo para Portugal até retornar à China. Essa novela de Torga reflete a própria condição do ser português de transitar pelo mundo na ânsia de conquistas e aventuras.
A configuração da personagem deixa-se transparecer a partir de momentos específicos dentro da narrativa e que acompanham ciclos em sua jornada de vida. O primeiro momento é representado quando o Senhor Ventura sai de Penedono, seu lugar de nascimento: “Os vinte anos ali vividos eram muito, mas não eram tudo” (Torga, 2006: 25). O pastor Ventura inicia sua jornada, deixando a família e partindo para o serviço militar em Lisboa. Esse será o marco de seu primeiro renascimento, pois sai de um lugar interiorano para outro distinto culturalmente. Penedono é o reduto seguro, que marca seu nascimento; Lisboa simboliza sua metamorfose, qual lagarta que deixa o casulo e passa a ansiar o abrir das asas. Contudo, de espírito jovem e audacioso, envolve-se em constantes brigas que o tornam suspeito da morte de um homem. É absolvido por falta de provas, mas o fato rende-lhe fama de valente e a oportunidade de integrar o contingente militar português em Macau, onde se envolve com a filha do secretário do Governador. Após muitas aventuras e problemas, parte para Pequim, passando cinco anos navegando num navio de cabotagem. Aqui temos o segundo renascimento do Senhor Ventura: “À medida que o barco avançava, e novas terras vinham ao encontro da sua imaginação, o Senhor Ventura sentia que qualquer coisa morria dentro de si, para dar lugar a uma outra que nascia” (33). Marco importante nesse ponto foi o encontro com o fiel escudeiro que seguirá com ele nesse novo ciclo: “uma cara redonda, risonha, corada, aflorou pela fresta da porta. O de Penedono farejou irmão” (43). O Senhor Ventura conhece Pereira, cozinheiro da região do Minho, com quem compartilha, quixotescamente, audaciosas empreitadas. A dupla parte para o deserto de Gobi junto a um comboio de 200 caminhões Ford, onde são pagos pela missão bem-sucedida de raptar um milionário chinês. Nesse ponto da narrativa, o Senhor Ventura sente saudades da pátria e acede ao pedido reiterado de Pereira e decide dar fim à vida de aventuras e retornar a Portugal. Vontade fraca, pois que decide por voltar a Pequim, dessa vez predestinado a encontrar a russa Tatiana, com quem tem um desafortunado casamento, pois o amor não era retribuído por parte da mulher, que lhe impõe a sua vontade até mesmo sobre a escolha do nome do filho, sendo Sérgio e não António (nome que lhe garantiria a origem lusitana). Pelo filho aprende a ler e a escrever e inicia novo ciclo de renascimento: “Até ouvir o seu primeiro grito por detrás de um biombo, o Senhor Ventura não era capaz de acreditar que dois palmos de vida pudessem abalar tanto um homem” (95).
Nessa altura da narrativa, o Senhor Ventura sabe da morte de seu pai, a fim de garantir a herança do filho, resolve empreender na fabricação de heroína, mas sofre as penas da lei chinesa e é repatriado, deixando para trás mulher e filho. A volta a Penedono representa seu terceiro renascimento. Lá, sabe que a mãe há pouco morrera e decide enfrentar nova missão: fazer produzir a terra, enquanto tenta ganhar tempo e forças para se reunir a Tatiana e ao filho. Tendo vindo até ele somente o filho, matricula-o num internato em Lisboa, e segue resoluto para Macau para procurar Tatiana: “No fim da narrativa, o alentejano descera de novo ao poço sem fundo dos seus primeiros anos” (175). Procura pela mulher por toda a parte, mas, com a saúde debilitada pela vida errante, é Tatiana que o encontra, às portas da morte. Enterrado e finda a sua jornada, “mãos estranhas enterraram no dia seguinte o corpo mirrado do pobre aventureiro na terra estrangeira onde devia pagar o preço das suas aventuras” (199). O filho desamparado retoma a saga do pai, tornando-se pastor, fechando e abrindo novo ciclo de jornada mítica do Senhor Ventura: “O Gaudêncio velho, então, teve pena dele e pô-lo a guardar ovelhas no Farrobo. Pastor, que foi por onde o Senhor Ventura começou” (199).
Referência
TORGA, Miguel (2006). O senhor Ventura. 1.ª ed. Especial, Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
[publicado a 11-06-2021]