Vicente é a personagem que dá título a um dos contos de Bichos, coletânea de Miguel Torga, publicada originalmente em 1940. Os catorze contos apresentam como personagem protagonista um animal humanizado ou um humano zoomorfizado, vivendo um tipo de conflito, seja com sua própria natureza ou com Deus. A personagem Vicente é um corvo, simbologia do ser humano, o que explica a escolha de seu nome humano, que provoca Deus ao não cumprir com seu dever de criatura subordinada, e foge da arca de Noé na primeira oportunidade que lhe é dada. Metáfora da insatisfação humana diante do autoritarismo divino, figurativamente, o corvo Vicente representa a coragem silenciosa do oprimido diante da voz do opressor que procura intimidar, impondo castigos.
A narrativa inicia-se a partir da descrição implícita do temperamento insubmisso do corvo, pois “à hora em que o céu se mostrava mais duro e mais sinistro, Vicente abriu as asas negras e partiu” (Torga, 1996: 129), fazendo clara alusão ao episódio do Dilúvio. Em Gênesis, 8:6-11, é descrito que, após quarenta dias, Noé abre a janela da arca e solta primeiro um corvo para saber se as águas baixaram, só depois é que solta uma pomba, esta, sim, depois de idas e vindas, retorna com uma folha verde de oliveira em seu bico.
O conto é atravessado por digressões acerca do comportamento de Vicente, a fim de que o leitor consiga desvelar os acontecimentos que conduziram a personagem até seu ato de insubmissão à ordem divina de retornar à arca. Existe uma evidente analogia entre a personagem Vicente em seu desejo de liberdade com a própria essência do livre arbítrio dos homens.
Ave de mau agouro no simbolismo europeu, no conto, o corvo transfigura-se em afirmação da vontade essencial de qualquer espécie de seguir o seu próprio destino sem a interferência de qualquer poder socialmente imposto. Ao decidir-se por abrir as asas e partir, Vicente assume o controle de sua vontade, posto que, assim como os demais animais, fora um dos “escolhidos” e, conformado, entrara na Arca, mas “desde o primeiro instante todos viram que no seu espírito não havia paz” (Torga, 1996: 129).
A personagem Vicente, diferente do corvo bíblico, foge, deixando para trás os outros animais “pasmados e deslumbrados” (130), depois de passar quarenta dias mergulhado em questionamentos a respeito do porquê da superioridade de uma espécie animal (homens) sobre outra: “A que propósito estavam os animais metidos na confusa questão da Torre de Babel? Que tinham que ver os bichos com as fornicações dos homens, que o Criador queria punir?” (129).
Ao colocar o criador recuando frente à vontade inquebrantável do corvo, Miguel Torga subverte e questiona a imagem de um Deus que não aceita atos de rebeldia. A terra firme em que o corvo se assenta e resiste às investidas das águas sob a força divina representa o amparo que o homem encontra na natureza. O próprio pseudônimo do autor, “Torga”, remete à planta rasteira que sobrevive porque se agarra à rocha, tal como a personagem Vicente, que resiste e dobra a determinação de Deus porque finca-se a um pequenino pedaço de terra, enfrentando a morte por três vezes.
O livre arbítrio do corvo é a chave de leitura do conto, que remete para o posicionamento político de Torga, para quem a vida só vale a pena com liberdade, fazendo uma relação com a época de publicação da obra. Ao revisitar o mito bíblico, o autor transforma-o, e Deus não vê outra solução a não ser salvar a sua criação. Vicente dobra a resistência da autoridade divina.
Vicente representa o espírito que não se sujeita à tirania, seu caráter é a metáfora da insubmissão, não sendo considerada desobediência. Desobediência significa que o indivíduo aceita ordens e, em determinado momento, passa a contrariá-las. No caso de Vicente, seu desejo era de retomar a liberdade perdida: “Escolhera a liberdade, e aceitara desde esse momento todas as consequências da opção” (134).
A introspecção da personagem e seu silêncio a colocam em vantagem em relação aos humanos da arca, posto que Noé não consegue esconder de Deus o que vai em seu íntimo. Seu ato de abrir as asas e lançar-se ao desconhecido é “símbolo da universal libertação” (130). Assim, Deus, “que nada podia contra aquela vontade inabalável de ser livre”, cede “para salvar a sua própria obra fechava, melancolicamente, as comportas do céu” (135).
O temperamento destemido e insubmisso de Vicente desafia a autoridade instituída, ao mesmo tempo que impõe respeito por parte de seu criador, que fica à mercê da vontade inabalável de sua criatura. A determinação de Vicente é a metáfora da própria vontade humana que, mesmo não negando sua gênese, opta por não aceitar o destino e a condição que lhe são impostas.
Referência
TORGA, Miguel (1996). “Vicente”. Bichos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 129-135.
[publicado a 11-06-2021]