João do Rosário Portela é uma personagem do romance O Hóspede de Job, publicado em 1963, mas escrito entre 1953 e 1954 por José Cardoso Pires. Este romance, composto por várias intrigas distintas imbricadas, tem, na figura de João Portela, uma espécie de síntese destas histórias, que recriam um mesmo ambiente ficcional alentejano. Refere-se a ele a alusão alegórica a Job, no título.
Camponês, “natural e residente em Cimadas, distrito de Beja” (Pires, 1972: 136), solteiro de 28 ou 29 anos (167), João Portela é um camponês em busca de trabalho cuja saúde é severamente debilitada: “Pelado, duas manchas ralas em lugar de sobrancelhas e umas vistas ardidas, sem pestanas, correm-lhe nas veias galiqueiras antigas, injeções de 914, arsénio e bismuto em doses de cavalo” (83). Além das marcas na pele, sofre de convulsões e desmaios, cuja causa sugerida é a sífilis, sem descartar a hipótese de o seu sofrimento ser derivado da fome: “Seriam os nervos? O venéreo? Não podia muito bem ser o venéreo de que tanto padecera o pai do rapaz e, por herança, ele próprio, o Portela?” (99); “a menos que, naquela doença, não se trate de febres nem de sangue podre e que tudo seja derivado da fome ou do calor” (111).
Focalizado por um narrador heterodiegético, João é sempre acompanhado por Tio Aníbal, coprotagonista da trama (cf. Lepecki, 1977: 28): “Lá vêm eles através das extensões arenosas que se perdem nas vizinhanças do polígono de tiro. João Portela à frente, como de costume; o velho, de espingarda à bandoneira, a amagicar nos seus planos” (Pires, 1972: 109). Figura de coesão entre vários espaços narrativos do romance, o velho, ávido leitor, é quem paternalmente engendra as possibilidades de trabalho para o jovem Janico como vendedor de folhetos de cordel depois que João passa por uma terrível desdita: a amputação de uma perna. Esta tragédia lhe é infligida pelo estrangeiro Capitão Gallagher (seu antagonista, i.e., o hóspede), quando, para apresentar um novo material de guerra, os militares fazem um tiro de demonstração no areal onde estavam Aníbal e João, que é atingido gravemente.
Transficcionalmente, é explícito o paralelo com a imagem bíblica de Job, figura do Velho Testamento que perde todos os seus bens e é acometido de úlceras por todo o corpo, sem nunca vacilar em sua fé: “Se recebemos os bens da mão de Deus, não aceitaremos também os males?” (Job, 2: 10). Assim, João Portela personifica o sofrimento do proletariado rural sem terra, mas também a sua resiliência no enfrentamento das dificuldades. Pode ser, portanto, considerado uma personagem típica, por atender ao “propósito de ilustrar, de forma representativa, aspectos sociais, profissionais, psicológicos ou culturais considerados relevantes no universo em que se desenrola a ação” (Reis, 2018: 511). O prefácio do romance escrito pelo autor corrobora este viés, propondo-o como “«uma história de proveito e exemplo» – um romance no sentido tradicional do termo, destinado unicamente a ilustrar uma legenda, uma moral, um clima humano (…) e as personagens do livro são, pois, elementos típicos recriados (…) com o objetivo de um tom sentencioso, exemplar” (Pires, 1972: 195).
Do ponto de vista ideológico, a caracterização da personagem está de acordo com o legado neorrealista que a envolve e representa o sujeito mais explorado na estrutura fundiária, dentro da fórmula trinitária de Marx (cf. 2017: 771-775). Importa, portanto, denunciar as condições de vida desta parcela do proletariado português que João Portela personifica, mas da qual não é o único representante no romance: “[os de Cimadas] não podiam aceitar a jorna do lavrador do Lousado por ser igual à do ano anterior, que já nessa época tinha sido muito baixa. Havia ainda outro motivo que era o de terem metido no Lousado mais máquinas à lavoura e não garantirem o mesmo tempo de contrato dos outros anos.” (Pires, 1972: 47).
O livro gozou de notável reconhecimento quando da sua publicação, sendo o primeiro romance do autor traduzido e publicado fora de Portugal, além de ter sido galardoado com o Prémio de Novelística Camilo Castelo Branco, em 1964. O discurso de agradecimento pelo prémio seria posteriormente revisitado e publicado em E agora, José? (1977), sob o título “Discurso entre irmãos”. As personagens alentejanas ganharam interpretação plástica pelas mãos do artista gráfico Würtz Ádám na edição húngara da obra publicada em 1967.
Referências
Interpretação plástica de O Hóspede de Job de José Cardoso Pires pelo ilustrador húngaro Würtz Ádám (1967). Diário de Lisboa. 25 de maio. Suplemento Vida Literária e Artística, p. 5.
LEPECKI, Maria Lúcia (1977). Ideologia e Imaginário. Ensaio sobre José Cardoso Pires. Lisboa: Moraes Editores.
MARX, Karl (2017). O Capital – Livro III. São Paulo: Boitempo.
PIRES, José Cardoso (1972). O hóspede de Job. Lisboa: Moraes Editores.
____ (1977). E agora, José?. Lisboa: Moraes Editores.
REIS, Carlos (2018). Dicionário de Estudos Narrativos. Coimbra: Almedina.
[publicado a 24-05-2021]