O Coronel Amílcar Lencastre é uma personagem da obra Fantasia para Dois Coronéis e uma Piscina (2003), novela do escritor Mário de Carvalho. À semelhança do seu camarada de armas Coronel Maciel Bernardes, esta personagem está ao serviço da acutilante sátira feita a Portugal e aos portugueses, pois também padece da “pulsão coloquial” (Carvalho, 2003: 11) que assola este país tagarela. A sua funcionalidade satírica advém, a montante, do seu trajeto de vida e a jusante da sua articulação com outras duas personagens: o seu companheiro Coronel Bernardes e o seu filho Nelson. Numa rápida analepse, o narrador informa o leitor acerca da sua ascendência goesa, pois o Coronel Lencastre vem de uma família da elite colonial goesa, “miscigenada, lusófila” (71), de antiga origem brâmane, posteriormente católica, que, aquando da anexação de Goa pela Índia, em 1961, se autoexila em Moçambique. Longe da família, Amílcar Lencastre vem estudar na Academia Militar, em Lisboa. Mais tarde, o jovem oficial, de aspeto pequeno e seco, marcialmente formatado, revelar-se-á “eficaz” na guerra colonial; todavia, por causa da sua rigidez, adaptar-se-á mal ao espírito do 25 de Abril, chegando a ficar afastado. Casou cedo com Maria José, oriunda de uma família de militares, com quem teve o filho Nelson.
Num registo cómico-satírico, o autor esquissa um flagrante contraste geracional entre pai e filho: o Coronel Lencastre, rígido, de compostura britânica, contido até ao ponto de parecer inexpressivo, e o filho Nelson, de 42 anos, de rabo de cavalo, ornamentado de piercings, lídimo representante de uma linguagem urbana a bordar o marginal, mal articulada, cheia de coloquialismos (como “gajo” e “porreiro”) e com a inevitável muleta do “pá”. Vagamente ligado ao mundo do espetáculo, na parte da produção sonora, colecionador de namoradas, que leva na sua caravana pelo país fora, Nelson diz ser um artista do tag, que, segundo ele, serve para “dar sobressaltos” (74) à burguesia. Desiludido com este filho, cábula enquanto estudante, revolucionário de pacotilha e pretenso artista sem eira nem beira, que apenas vem a casa para pedir dinheiro, o Coronel, acompanhado pela sua esposa Maria José, aposta numa alternativa ao apartamento de Lisboa e compra um monte junto daquele do seu amigo Coronel Bernardes, não muito longe de Serpa. É, pois, num Alentejo profundo que os dois Coronéis vão emparceirar à beira da piscina, dedicando o seu tempo a longas cavaqueiras, em que não faltam rememorações de episódios das guerras em África. Assim, o Coronel Lencastre, ele próprio fruto híbrido do colonialismo, passa a ser representante do passado colonial português, organizado e violento, mas também da falência de uma geração na transição para os valores democráticos. Com efeito, a sua “altanaria de poucos amigos” (217) — qualidade que partilha com o Coronel Bernardes — revela-se desastrosa na preparação da nova geração, deixando passivamente emergir esse fruto que é o seu filho Nelson, o qual funciona como um representante de um segmento das novas gerações democráticas, marcado pela vacuidade e pela falta de rumo.
A obra Fantasia para dois coronéis e uma piscina foi agraciada com o Prémio PEN Clube Português Ficção e com Grande Prémio de Literatura ITF/DST.
Referência
CARVALHO, Mário de (2003). Fantasia para dois coronéis e uma piscina. Lisboa: Caminho.
[publicado a 06-04-2021]