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Coronel Bernardes

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Autor: Da capa da edição croata

Coronel Bernardes (Mário de Carvalho, Fantasia para dois coronéis e uma piscina)

O Coronel Bernardes, mais precisamente, Maciel Bernardes, é uma personagem da obra Fantasia para dois coronéis e uma piscina (2003), novela do escritor Mário de Carvalho — ou “cronovelema” (Carvalho, 2003: 34), como o autor prefere chamar-lhe. O Coronel Bernardes tem como amigo o Coronel Lencastre — os dois emprestam a sua patente ao título da obra. Inicialmente, o leitor conhece a personagem num contexto de ociosidade, uma vez que o Coronel Bernardes, que já está reformado, se encontra a viver no Alentejo, alguns anos depois do 25 de Abril, numa propriedade da sua mulher Maria das Dores, onde o Coronel decide mandar construir uma piscina, espaço de lazer para ele o seu amigo Coronel Lencastre com quem frequentemente se encontra para “pôr a conversa em dia”, para “taramelar”. A conversa é a sua maior ocupação, senão mesmo a sua única ocupação. Assim, esta personagem funciona como uma das molas impulsionadoras da acutilante sátira feita a um Portugal dominado pela tagarelice, por um ininterrupto “falajar” (12), como se aponta logo desde o início da obra: “O país fala, fala, desunha-se a falar (...). O país não tem nada a dizer, a ensinar, a comunicar. O país quer é aturdir-se. E a tagarelice é o meio de aturdimento mais à mão” (11). Uma das funcionalidades da personagem é, então, a de constituir mais um exemplo do muito que se fala em Portugal; para este efeito, é lógico que ela seja desenhada como uma personagem-tipo e, assim, juntamente com outras personagens tipificadas, concorre para a representação satírica dominante na obra.

As características da personagem são expostas através de breves analepses, as quais são utilizadas pelo narrador para expor a sua história de vida. Sobressaem três momentos iniciais na configuração desta personagem: o tempo do serviço militar em África, durante a Guerra Colonial, o momento do baile de debutantes do Casino do Estoril, onde conhece Maria das Dores, a sua futura mulher, e o tempo a seguir ao 25 de Abril, vivido em Lisboa. O primeiro momento, introduz, de forma algo subtil, o tema da Guerra Colonial, servindo para criticar vilanias, descomedimentos e horrores que afloram em diversos episódios que os dois coronéis rememoram. Num tempo pós-colonial, há marcas da acidez da guerra que persistem: o estilo mandão e o porte altaneiro do Coronel, mas também hábitos associados com a memória do perigo, pois o Coronel dorme com pistola debaixo da almofada. O segundo momento caracterizador é constituído por outra breve analepse que mostra como o então Major se encantou por uma menina rica, de família importante e rica, mais desengonçada que bonita, por causa da sua linguagem vernacular, semeada de palavrões, inusitada numa licenciada em História da Arte. O terceiro elemento caracterizador é esquissado também muito rapidamente e dá conta da rápida adaptação do Capitão ao alvoroçado tempo a seguir ao 25 de Abril, transmudando o seu gosto da conversa e da argumentação para as atribuladas situações revolucionárias do PREC, não poucas vezes a raiar a demagogia. Este seu poder argumentativo será depois aplicado, num estilo marcial e ginasticado, na gestão que faz durante alguns anos do condomínio do prédio onde vive em Benfica. Já cansados do seu poder autoritariamente persuasivo e das suas táticas psicologicamente calculadas, os condóminos deixam entrever que o vão substituir e o Coronel, desgostoso por não ver valorizada a sua capacidade de mandar e organizar, parte para Alentejo.

A construção da piscina é o motivo em redor do qual se compõe a tessitura romanesca, criando diversos elos entre as personagens: Maria das Dores, a “baronesa”, que dá o aval e financia o empreendimento, Emanuel, mestre de xadrez, mas também vedor, que descobre de onde poderá vir a água e, ainda, Eleutério e Desidério, construtores de ocasião, trapalhões e trapaceiros. Estas últimas figuras, juntamente com outros tipos que cruzam os caminhos dos coronéis, representam a falta de cultura de uma grande parte da população de Portugal, que atinge diversas camadas sociais mais desfavorecidas, mas também os novos-ricos e mesmo alguns estratos da classe média, contribuindo para uma representação trágico-cómica do país.

Assim, “a piscina eÌ a alegoria do próprio país” (Martins, 2011: 258), não só por representar um capricho sem utilidade, como também por mostrar, em registo de sátira fulminante, a ignorância aliada à ganância — aspetos presentes no trágico-cómico episódio do esfacelamento dos artefactos arqueológicos achados na escavação do terreno para construir a piscina, na mira de encontrar algum tesouro ou objetos valiosos. O tom satírico da narrativa é algo amenizado pelo cómico e pelas alusões paródicas (especialmente à Odisseia), concitando assim um desenho anti-heroico da personagem. Esta característica é compensada pela capacidade de contenção evidenciada no episódio em que descarrega todas munições da sua arma automática em torno de Emanuel depois de o encontrar com a sua esposa, sem, no entanto, o matar — um episódio capaz de mitigar um pouco a dose de machismo de tom marcial que também caracteriza este Coronel.

 

Referências

CARVALHO, Mário de (2003). Fantasia para Dois Coronéis e Uma Piscina. Lisboa: Caminho.

MARTINS, J. Cândido de Oliveira (2011). “MaÌrio de Carvalho e o retrato melancoÌlico de um paiÌs: ironia, paroÌdia e desencanto”, in João A. C. da Silva; J. CaÌ‚ndido de Oliveira Martins e M. Gonçalves (orgs.), Pensar a Literatura no SeÌc. XXI. Braga: Aletheia.

Maria João Simões