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Imperador

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Autor: Júlio Pomar
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Autor: João Abel Manta

Imperador (José Cardoso Pires, Dinossauro Excelentíssimo)

Protagonista de Dinossauro Excelentíssimo, o Imperador corresponde à figura do ditador Salazar, como se torna claro após os primeiros momentos de leitura. Nas suas páginas, a história de vida deste governante (e a história de uma ditadura) é contada sob a forma de uma fábula partilhada com uma das filhas de Cardoso Pires, indiciando a presença de uma metalepse. De facto, esta obra não esconde a sua estreita ligação com o real, trazendo para a narrativa a experiência pessoal de Cardoso Pires enquanto escritor perseguido pela censura. Nesta fábula dirigida a Ritinha, Cardoso Pires é o contador de histórias que tece a biografia de um Imperador. De acordo com ele, o reino (ou a sociedade portuguesa) está dividido em mexilhões, camponeses e “dê-erres”. Os mexilhões, “só tripa e casca”, alimentavam-se de “água e sal, do sumo da pedra ou de milagres” (Pires, 1972: 26). Já os camponeses, “tinham a barriga curtida, eram cardos” que “se cravavam na terra como uns danados, à dentada. Acocoravam-se nas tocas e nas dobras das montanhas” (25). Os dê-erres eram seres híbridos, uma subespécie descendente de camponeses que enriqueceram. Na verdade, eram “mexilhões do litoral e do interior que, no contacto com as leis e a administração” haviam adquirido “vícios típicos e porte bem definido” (40). Neste “retrato grotesco de Salazar” (Portela e Pires, 1991: 36), a população portuguesa é apresentada como reduzida à bestialidade por um regime castrador e opressivo.

Dividido em três partes e um “Epílogo”, Dinossauro Excelentíssimo conta a história do Imperador desde a infância até à queda. Na primeira parte, é feita referência às suas origens humildes e é relatado como o destino do protagonista terá sido traçado por um padre que acreditava que o Imperador, então criança, “ia para as leis” (Pires, 1972: 13). Também é contado como, na Universidade de Coimbra, veio a destacar-se por usar uma linguagem próxima dos “alfarrábios, uma maneira de discorrer tão encarreirada a aparo burocrático” (24).

A segunda parte é centrada no reino e nos seus habitantes. Derrotados pelos dê-erres e pelas suas “rajadas” de discursos e contradiscursos (27), estes são forçados a vestir de preto e a calar o riso. A forma como a ditadura começa a impor o seu domínio sobre a população é igualmente descrita nesta parte. Enquanto as feiras e romarias desapareciam, os sinos das igrejas multiplicavam-se. Soldados e procissões “patrulhavam” agora as estradas (28–29).

Já a terceira parte desta fábula é dedicada às palavras, mais concretamente ao aparelho censório desenhado pelo Imperador. A obsessão pelas palavras e pelo poder acaba por refletir-se na fisionomia do Imperador que, continuamente debruçado sobre a secretária, começa a ganhar bossas nas costas. Fechado no seu gabinete, o dinossauro escreve “em largos comprimentos de onda para alô-mundos, murmurando as palavras, roendo-as ao correr da caneta” (63). Foi assim que os seus “lábios foram desaparecendo, sugados” (63) e que ficou com “os dentes em escama” (63). De tanto escrever, os dedos da mão direita ganharam calos e “afilaram-se em garra” (63). O Imperador torna-se gradualmente numa figura grotesca, obstinadamente agarrada ao poder, até que acaba por morrer “sob o peso dos mitos” que havia inventado (71).

Aparecida na posteridade do neorrealismo (cf. Reis, 2016: 7–8), a história do dinossauro imperador (ou “sua alteza, o camponês mestre” ou Douktor Dinosaurus) foi escrita no Natal de 1970 em Londres, num período de profunda desilusão a que José Cardoso Pires chamou “inverno ‘liberal’” (Pires, 1999a: 194). Dois anos tinham passado desde a queda de António de Oliveira Salazar e da subida de Marcelo Caetano ao poder, mas a tão desejada transição para a democracia permanecia inalcançável. Ao invés de um corte derradeiro com o passado repressivo, assistia-se a um prolongamento de um regime ditatorial que já apresentava claros sinais de decadência. Em resposta a este desvanecer de todas as expectativas, Dinossauro Excelentíssimo apresentava uma crítica impiedosa, denunciando um sistema político que descura a sobrevivência dos cidadãos para garantir a sua autopreservação.

Antes da publicação de Dinossauro Excelentíssimo, Cardoso Pires já havia enfrentado a censura. O livro Histórias de Amor (1952), por exemplo, foi proibido em 1952, e Cardoso Pires chegou a ser detido pela PIDE por causa deste livro. Ao contrário da obra Novas Cartas Portuguesas, de Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa, também publicada em 1972, Dinossauro Excelentíssimo escapou às garras da censura, não só por estar mascarado de conto popular ou de literatura infantil, mas por causa do célebre debate na Assembleia Nacional em que Dinossauro Excelentíssimo foi apresentado, por um deputado defensor do regime (Casal Ribeiro), como prova de que existia liberdade de expressão em Portugal. Inadvertidamente, este gesto privou a censura da oportunidade de apreender este livro. Segundo Cardoso Pires, o relato deste episódio terá sido tão difundido que esta obra ficaria conhecida como o “livro da Assembleia” (Pires, 1999: 106‒108).

Dinossauro Excelentíssimo conta com duas versões fundamentais publicadas antes e depois da ditadura (1972 e 1979). A primeira edição desta obra vem acompanhada de ilustrações de João Abel Manta, autor de diversas caricaturas de Salazar e sobejamente conhecido pela sua tenacidade enquanto crítico do regime. Na coletânea O Burro em Pé (Pires, 1979), Dinossauro Excelentíssimo é apresentado ao público com uma única ilustração criada por Júlio Pomar. É também transformado em conto, sofrendo diversas alterações. Quando publicada na coletânea de contos A República dos Corvos, em 1988, a história surge despida de imagens (Pires, 1988). Em 1999 e em 2003, aparece novamente publicada como livro, em edições de Publicações D. Quixote e do Círculo de Leitores, respetivamente. Em 2016, é publicada juntamente com as ilustrações de João Abel Manta e um prefácio escrito por Carlos Reis. Em 1978, Dinossauro Excelentíssimo foi traduzido para alemão; em 2003, para italiano e, em 2017, para espanhol.

 

Referências 

PIRES, José Cardoso (1972). Dinossauro Excelentíssimo. Lisboa: Arcádia.

____ (1979). O Burro-Em-Pé. Lisboa: Moraes Editores.

____ (1988). A República dos Corvos. Lisboa: Pub. Dom Quixote.

____ (1999). “José Cardoso Pires: a Censura fez-nos viver num país alienado”, in Cândido Azevedo,  A censura de Salazar a Marcelo Caetano: imprensa, teatro, televisão, radiodifusão, livro. Lisboa: Caminho. 99-112.

____ (1999a). “Técnica do golpe da censura”, in E Agora, José ?. Lisboa: Publicações Dom Quixote. 161-197.

____ (2016). Dinossauro Excelentíssimo de José Cardoso Pires. Alfragide: Leya.

PORTELA, Artur e José Cardoso Pires (1991). Cardoso Pires por Cardoso Pires. Entrevista de Artur Portela. Lisboa: Publicações Dom Quixote.

REIS, Carlos (2016). “Prefácio”, in Dinossauro Excelentíssimo de José Cardoso Pires. Alfragide: Leya.

Daniela Côrtes Maduro