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Manuel Louvadeus

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Autor: Capa do DVD - adaptação da RTP

Manuel Louvadeus (Aquilino Ribeiro, Quando os lobos uivam)

Ao luar de uma noite de março chega a Arcabuzais da Fé, na Beira Alta, Manuel Louvadeus, o protagonista do romance Quando os lobos uivam (1958), de Aquilino Ribeiro. Não é despicienda de significado a escolha, pelo narrador, deste momento particular para anunciar ao leitor, mas sobretudo à família e aos habitantes da aldeia, o regresso ao país da sua personagem, depois de dez anos emigrado em terras de Vera Cruz, dos quais seis envoltos no mais completo silêncio. Quem entra, à hora da ceia, como uma “golfada de vento” (Ribeiro, 2016: 15) na penumbra da modesta casa? Um brasileiro de torna-viagem? O marido…? O pai…? As dúvidas vão sendo resolvidas com impasses que levam à alegria da confirmação: Manuel! Ele mudara, mas a aldeia e as suas gentes permaneciam obsessivamente represadas no tempo. Por instantes, equaciona voltar para Mato Grosso.

O relato da sua saga no Brasil é efetuado em discurso de primeira pessoa, na reserva de uma noite na Rochambana, no cume da serra, apenas e tão só a seu pai, Teotónio Louvadeus: a falência dos bancos onde Manuel depositara algumas poupanças; a deslocação de Campinas para as agruras do sertão, para os ribeirões de Araguaia, em busca da árvore das patacas, do ouro e das pedras preciosas. Descobre diamantes e ametistas; é roubado pelo amigo Serôdio, aquele a quem salvara de morrer afogado no rio Tietê. Regressa, por conseguinte, à aldeia natal sem a riqueza tão ambicionada.

O incipit da narrativa evidencia uma relevante diversidade de focalizações que tem como objetivo dar a conhecer a personagem do ponto de vista da sua caracterização física e psicológica, elementos incontornáveis da sua figuração. Filomena, a mulher, Jaime e Jorgina, os filhos, perscrutam o homem risonho de ar exótico que enverga paletó e traz no pulso um relógio de prata com pulseira de ouro, o “gato maltês” (15) que, porque o reconhecimento pelos seus ia tardando, é assolado por uma animosidade mesclada de dor e de raiva, logo desvanecida pela rendição filial de Jaime e pelo abraço de Jorgina. Será a filha a informá-lo, de imediato, acerca da intenção estatal de florestar os baldios da Serra dos Milhafres, única fonte se subsistência dos habitantes da região, desígnio que acarretaria graves consequências sociais.

Os amigos de longa data, João Rebordão, Manuel do Rosário, Justo Rodrigues, Júlio Nacomba, têm Manuel Louvadeus como uma pessoa bem-falante, sensata, de pensamento reservado, razão pela qual o elegem como porta-voz do descontentamento geral e interlocutor dos representantes do Governo no território, uma vez que o presidente da Câmara, Dr. Labão do Carmo, um oportunista obsequioso, apoia as medidas em favor do progresso. Manuel procura apaziguar os ânimos dos conterrâneos que encaravam a questão como um assunto de vida ou de morte, pois estava certo de que violência acarretaria mais violência. Várias são as aldeias que se unem no esforço conjunto de impedir a ação de um Estado, carrasco e ladrão, que os escorraçava da terra. Todavia, as suas palavras de homem lido e viajado não são escutadas por todos. Há sublevação popular diante da presença de engenheiros e trabalhadores que limpam a serra, escoltados pela Guarda Nacional Republicana e a Cavalaria, resultando em mortos e feridos.

Manuel Louvadeus é injustamente condenado, com outros populares, a multa e a três anos de cárcere, como cabeça de motim, incitador à desordem e causador de uma morte com um rifle supostamente trazido do Brasil. A acusação proferida na Cadeia da Relação do Porto apresenta-o como agitador comunista, “agente perigoso da subversão social, membro do partido criptocomunista português” (211). Depõem, em defesa do protagonista, Dr. Rigoberto Mendes, o advogado e amigo, e César Fontoura, um dos engenheiros dos Serviços Florestais.

Cumprida a pena, Manuel Louvadeus apresenta-se em Arcabuzais “mais velho, mais macilento, mais lido e sabedor das coisas do mundo, e mais idealista” (307-308). Decide voltar ao Brasil com a utópica finalidade de reaver a sua fortuna para, depois, compensar a família com uma bela quinta e renovar a sua aldeia: construiria uma Escola de Artes e Ofícios, dotá-la-ia de dispensário, de correio, telefone, luz elétrica, resgatando-a do medievalismo que a caracterizava. A família vê-o partir…, espera o seu regresso…, que nunca chega a acontecer. Entretanto, Teotónio Louvadeus vinga os baldios retirados à comunidade local, incendiando o pinhal que cobria a Serra dos Milhafres.

O romance Quando os lobos uivam viria a ser apreendido pelo regime salazarista por ter sido considerado subversivo e ao seu autor instaurado um processo-crime, em março de 1959 (Nunes, 2020).

Para a sobrevida da personagem contribuiu a adaptação do romance à série televisiva homónima da RTP, em 2006, com guião de Francisco Moita Flores e realização de João Cayatte. António Capelo interpretou, de forma exemplar, Manuel Louvadeus.

 

Referências

NUNES, Renato (2020). “O processo-crime motivado pelo romance Quando os lobos uivam”, in Aquilino Ribeiro na Ditadura Militar e no Estado Novo de Salazar (1926-1963). Coimbra: Edições MinervaCoimbra. 241-291.

RIBEIRO, Aquilino (2016). Quando os lobos uivam. Lisboa: Bertrand Editora.

Maria Eduarda Borges dos Santos