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Amadeo

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Autor: Amadeo de Souza-Cardoso, Autorretrato

Amadeo (Mário Cláudio, Trilogia da mão)

Assumidamente (re)criada a partir de dados factuais relativos ao pintor modernista, a personagem Amadeo (de Souza-Cardoso) protagoniza a biografia romanceada (1984) que, posteriormente, com Guilhermina e Rosa, virá a integrar a Trilogia da Mão (1993). Inicialmente pensado como ensaio a ser publicado na coleção monografias, dirigida por Vasco Graça-Moura na Imprensa Nacional (Letria, 2020: 89), o projeto rapidamente assume outros contornos e protocolos genológicos que serão, também eles, transgredidos e implodidos. Referimo-nos, em particular, à não obediência estrita aos convencionais clichés e fórmulas de grafar vidas, numa linha de fuga instaurada pelo recurso ao registo diarístico; ao assumido aparato de artifícios imaginativos, presentes, por exemplo, no preenchimento dos silêncios da infância do artista vivida na Casa de Manhufe; e ao facto de nos serem facultados outros percursos vivenciais: do virtual biógrafo, Papi, e de Frederico, o efetivo biógrafo e narrador “de si e do trabalho a que seu Tio se dedicava” (Cláudio, 1993: 136).

Do homem-pintor sugerido pelo título, o leitor reterá, pois, não uma apresentação cronologicamente objetiva de uma vida, mas um arco biográfico difuso, porque sistematicamente pontuado por uma evidente dimensão abstraticizante, suscetível de convocar dinâmicas pictóricas afins e suscetível, também, de nimbar a narrativa (a narração e a leitura) de um ritmo lúdico e de uma cor que oscilam entre o mistério e o exotismo: “Hoje tem sido um fala-só, debitando para consumo próprio as intenções da biografia que lavra, equiparando-a a uma tela do pintor, dessas últimas, com os fragmentos da vista, o fruto, o título, o inseto, as cordas da viola” (103).

Porém, e ainda que o narrador assuma o não domínio dos factos, ao perguntar-se, por exemplo, “mas chegar a Paris como teria sido?” (50), a referência regular a marcos cronológicos, ou a momentos reconhecíveis e certificáveis da vida do pintor, permite verificar uma certa preocupação com a inscrição de informações moduladas pelo que Skildesky (1988: 12) designa como programa (biográfico) de dizer a verdade.

Assim, por entre os espaços vividos e percorridos, vamos sabendo de um Amadeo-criança ingenuamente crente no destino (Cláudio, 1993: 11) ou do “bicho bisonho”, em preparação republicana, e também boémia, numa Coimbra de que lhe ficam poucas vivências (30, 31). Iremos conhecendo, também, o jovem adulto de “espírito dramático” (43), “blagueur e snob” (63) (como o designa Mário de Sá-Carneiro), ávido de fama, agora em Paris, onde terá muitas aprendizagens e onde “Poucas vezes se perderá (…) pelas conversas de rua”, pois “O seu tempo é o do assalto e da tomada de ideias e de fêmeas, da destilação de resultados, da completa mudez” (60). Antes da morte abrupta, aos 30 anos (127), não deixaremos ainda de entrever a relação com “os de Orpheu” (107), ou a volúpia com que, evadido da Cidade Luz, de regresso à Casa de Manhufe, acolhe “a desordem suicidária das armas” (99), talvez na mesma vertigem que o faz ler “Arthur Rimbaud como quem pinta” (110).

Apesar de tudo, ainda que a personagem nos chegue diluída e escondida pelas entrelinhas de uma biografia diferida, porque resultado das espreitadelas de Frederico ao trabalho de Papi (108), é possível comprovar um carácter duplamente pedagógico: pelo que dela se apre(e)nde e pelo que do processo de criação biográfico-literário se assimila, numa aliança tácita entre aprendizagem, pedagogia e fruição estética (cf. Arnaut, 2002).

 

Referências

ARNAUT, Ana Paula (2002). Post-Modernismo no Romance Português Contemporâneo. Fios de Aridane-Máscaras de Proteu. Coimbra: Almedina.

CLÁUDIO, Mário (1993). Trilogia da Mão. 3.ª ed. Lisboa: Dom Quixote.

LETRIA, José Jorge (2020). Mário Cláudio: A Verdade e a Beleza Continuarão a Existir. Diálogos com José Jorge Letria. Lisboa: Guerra e Paz.

SKIDELSKY, Robert (1988). “Only Connect: Biography and Truth”, in Eric Homberger e Eric Charmley (eds.), The Troubled Face of Biography. St. Martin’s Press: New York. 1-16.

Ana Paula Arnaut