Mariano Paulo é personagem central de Casa na duna (1943), romance de estreia de Carlos de Oliveira na ficção portuguesa. Mariano é o atual representante da casa dos Paulos, uma linhagem de pequenos proprietários rurais de Corrocovo, uma entre outras “aldeolas ermas, esquecidas entre pinhais, no fim do mundo” (OLIVEIRA, 2004: 7), mais especificamente, no solo arenoso e pobre da Gândara, onde floresce, em toda a sua fecundidade, o imaginário do ficcionista.
Conta-nos a história de Mariano um narrador heterodiegético, conhecedor do passado e do presente da família. O passado chega-nos analepticamente, sem grande demora ou pormenorização: é o tempo do casamento de Mariano Paulo com Conceição Pina, do nascimento do filho Hilário, das mortes do pai e da mulher. O presente é o tempo dos conflitos que movem a narrativa e que fazem avultar a centralidade de Mariano em termos de relevância na história: a sua difícil relação com Hilário e os sucessivos fracassos da tentativa de salvar a propriedade da falência.
A relação de Mariano com o filho é bastante relevante para sua figuração: “fraco” e “ensimesmado” (25), Hilário é o perfeito oposto de seu obstinado pai. Enquanto este lança mão de todos os expedientes para salvar a quinta da ruína, a Hilário tanto lhe faz o descalabro, desprendimento provindo duma natural indolência de temperamento e duma problemática conformação afetiva. Ressentindo a ausência da mãe, que morrera ao dá-lo à luz, o filho não estabelece um vínculo afetivo consistente com o pai nem lhe tolera o relacionamento com Maria dos Anjos, criada da casa. Assim, se Mariano “não perdoava a fraqueza do filho” (49), Hilário não perdoa “a profanação do leito da mãe”, e a hostilidade cresce “na casa sombria” (44).
Enquanto, no nível dos afetos, o principal conflito de Mariano advém da relação árida com Hilário, no da vida prática esse conflito decorre da ruína material e moral da família. Quase repentinamente, Mariano assiste à multiplicação das estradas, à mecanização dos meios de produção, à proliferação do comércio e das indústrias. Atingida pela concorrência dos produtos que então chegam muito mais fácil e variadamente a Corrocovo, a quinta “esbarronda-se” (48) e, não obstante os conselhos do amigo Guimarães, Mariano resiste a toda adaptação aos novos tempos: no que dependesse dele, a propriedade “continuaria silenciosa, sem o barulho dos motores. Os homens continuariam a semear e a colher, como há mil anos” (35).
Pressentindo a falência, Mariano oferece a possibilidade duma hipoteca a Guimarães, então em apuros financeiros. Seu intuito é pôr “uma corda ao pescoço” (54) do amigo, tomando-lhe os fornos de cal. Guimarães, entretanto, não só desfaz a hipoteca em tempo como traz à tona antigas imoralidades: “Apanhar desgraçados com a língua de fora e exigir hipotecas fazia parte dos hábitos da casa (...). A quinta de Corrocovo nascera desse lodo moral” (79). O último expediente de Mariano, a construção duma fábrica de telhas, prospera apenas a princípio, atingida pela concorrência. Sua vida torna-se então “um combate contra o destino” (117), combate que se acentua com o assassinato do filho. Mariano acredita ser vítima duma maldição: “Há muito que os Paulos foram condenados. Para pagar agora” (119). Decidido a “alcançar a vitória sobre o destino” (131), ateia fogo à quinta.
Ora, os conflitos individuais da personagem estão intimamente associados às transformações de seu ambiente social. Tais conflitos adquirem força semântica na medida em que repercutem no seu mundo interior, sendo representados pelo regime de focalização interna (Genette, 1979). Em diversos momentos, tal regime concretiza-se por meio da dissolução das fronteiras entre as vozes do narrador e da personagem, com o recurso ao discurso indireto livre. Esses recursos, priorizados nas sucessivas reescritas do romance (Casa na duna foi reeditado sete vezes, até ao texto definitivo, de 1980), assinalam, em obra publicada nos alvores do neorrealismo, um aprofundamento das preocupações sociais que permeiam a obra do escritor ao nível da experiência subjetiva das personagens.
A figuração da personagem ancora-se num espaço geográfico e social cujas feições guardam estreitas correlações com seu caráter e seu destino, aspectos que demarcam os sentidos ideológicos com os quais o romance se compromete. Trata-se dum ambiente agrário, mantido por um sistema econômico de conotações feudais e por uma “mentalidade aristocrática provinciana” (TORRES, 1967: 258). Em termos de extensionalidade, sugere-nos a narrativa que a dinâmica do tempo é irrefreável, e tal sistema, “areent[o] como o chão da quinta” (8) dos Paulos.
Referências
GENETTE, Gérard ([1979] 1995). Discurso da narrativa. 3.ª ed., Lisboa: Vega.
OLIVEIRA, Carlos de ([1943] 2004). Casa na duna. 7.ª ed., Lisboa: Assírio e Alvim.
TORRES, Alexandre Pinheiro (1967). Romance: o mundo em equação. Santa Maria de Lamas: Portugália Editora.
[publicado a 28-01-2021]