Protagonista de uma “comédia” contada a Calderón de la Barca por um narrador participante, Beatriz de Mascarenhas faz-se acompanhar, desde o título da obra, da peça de vestuário que dará azo a vários equívocos. Aliás, nesse diálogo entre Francisco e o grande dramaturgo espanhol adivinha-se já um autoelogio de Pinheiro Chagas ao seu opus “O que eu admiro sobretudo nas suas comédias de capa e espada, sr. D. Pedro Calderón, dizia Francisco de Mendonça, é o engenho com que tece as peripécias mais complicadas, como enleia os fios do enredo que não se imagina como poderá desenlaçá-la” (Chagas, s.d.: 20).
Educada sob o duro freio paterno, em pleno século XVII, um pouco suavizado pela cumplicidade de Inês, a criada, Beatriz surge diante aos olhos do leitor como uma menina frágil e casta, em constante sobressalto: “Beatriz, uma loira gentil, cujas faces alabastrinas se rosavam à mais leve comoção” (37). É, sem dúvida, um ser benquisto dos romances românticos e ultrarromânticos que aguça o travo sentimental e melodramático deste género de literatura, desde logo pela sua ingenuidade e pureza, bem como pelo temor em relação à figura patriarcal. Assemelha-se, nesse ponto, a Teresa de Amor de Perdição ou a Hermengarda de Eurico, o Presbítero, além de demonstrar o talento dramatúrgico de Manuel Pinheiro Chagas na delineação dos gestos e das tiradas das personagens.
Debuxada a partir do “romance pastoril” e com traços dos retratos de “Gôngora” (30) – assim zomba Luís de Meneses da descrição estereotipada feita pelo amigo – a angelical personagem “a mulher mais formosa, mais adorável” (29) ostenta olhos azuis e umas tranças louras.
A donzelinha vive um amor secreto com Francisco de Mendonça que, um dia, depois de ver a sua mantilha cair ao Tejo, se lança à água para a recuperar, guardando-a como recordação. Em troca, o enamorado envia-lhe “uma esplêndida mantilha preta semeada de palhetas de oiro” (38), simbólica rede de um enredo complicado. Requestada, contudo, há muito por D. Estêvão de Portugal, vê-se na iminência de assistir a um duelo travado por um dos pretendentes e pelo próprio pai, D. Álvaro.
Sem densidade psicológica digna de nota, assustadiça e a puxar à sentimentalidade piegas da leitora chorosa daquela época, a criação de Pinheiro Chagas foi inspirada na comédia calderoniana Antes que todo es mi Dama (1662), apesar de a técnica forjada ser a contrária, ou seja, Sebastião del Prado insta Francisco a contar a sua história para ser tornada em ficção: “Vamos, faça essa obra de caridade. Bem vê que D. Pedro Calderon está morto por transformar a história do seu casamento numa admirável comédia” (Chagas, s.d.: 21).
A Laura de Calderón (1662) é transformada em Beatriz pelo autor português; enquanto a primeira recebe um toucado como prenda “tan rica, estraña y bella/ que es fuerza repare en ella mi padre” (vv. 726-728); a segunda recebe uma mantilha: “— Não pode usá-la porquê?/ — Porque meu pai não pode saber a proveniência desta mantilha e ela é tão rica, que não poderá deixar de lhe dar na vista...” (Chagas, s.d.: 38). A parecença física entre ambas é grande, mas não provém, como Luís de Meneses aventa, de influências gongóricas nem bucólicas. É bebida diretamente na heroína castelhana: “La blanca tez, a quien la nieve pura/ ya matizó de nácar al aurora,/ de ningún artificio se asegura” (Calderón, 1662: vv. 307-309).
Em 1946, o cinema reabilitou A Mantilha de Beatriz / La mantilla de Beatriz, numa produção luso-espanhola (só parcialmente fiel ao romance) dirigida por Eduardo García Maroto e protagonizada pelas jovens Margarita Andrey (Beatriz) e Helga Liné (Clara). A estreia, no Cinema Trindade, a 16 de agosto desse ano, veio a revelar-se um enorme êxito, a somar-se a tantos outros obtidos por Pinheiro Chagas.
Em 1962, mais propriamente no dia 24 de julho, o romance foi levado à cena por Carlos Wallenstein, no Teatro Popular de Lisboa, com encenação de Pedro Bom.
Referências
CALDERÓN DE LA BARCA, Pedro (1662). Antes que todo es mi Dama, disponível em http://www.cervantesvirtual.com/obra/comedia-famosa-antes-que-todo-es-mi-dama-0/ (consultado a 01/01/2017).
CHAGAS, Manuel Pinheiro (s.d.). A mantilha de Beatriz. Lisboa: Empresa Literária Universal.
[publicado a 08-04-2017]