Coprotagonista do livro Os fidalgos da Casa Mourisca, quarto e último romance de Júlio Dinis, escrito entre 1869 e 1870, e editado postumamente no ano seguinte, a filha de dezoito anos dos lavradores Tomé da Póvoa e Luísa influi na vida dos fidalgos subentendidos no título: D. Luís, Jorge e Maurício. Todavia, surge apenas [ou seja: cataforizada; cf. Vieira, 2008: 45-46] no capítulo III como “a pequena que está na cidade”, logo identificada como “Berta”, seu designativo predominante (Dinis, s.d.: 917); reaparece só no capítulo VIII como narradora intradiegética pedindo epistolarmente o regresso à Herdade. O narrador extradiegético-heterodiegético, omnisciente e fidedigno, explicita então o relevo desta personagem: “a leitora suspeita já que vai chegar afinal a heroína da história” (967). O matrimónio com Jorge confirma tal relevo. À época, a superioridade físico-moral da “heroína” era premiada com o amor do protagonista, neste caso, Jorge. A ausência de Berta em Lisboa permite a maturação etário-educacional que impressionará os filhos de D. Luís: “– Foi daqui uma criança agradável, e veio uma encantadora mulher!” (971).
Gabriela, sobrinha do patriarca e auxiliar nestes amores aparentemente impossíveis entre uma plebeia lavradora e um fidalgo num meio rural conservador, resume lapidarmente a sua importância diegética: “Desengane-se, meu tio, o futuro da sua família está indissoluvelmente ligado a Berta” (210). De facto, ela é a chave regeneradora da Casa Mourisca. Com desvelos maternais, cura D. Luís, seu padrinho, de uma profunda depressão, mas também salva simbolicamente os três fidalgos: esboroa preconceitos aristocráticos do patriarca em plena Regeneração; torna feliz Jorge; consciencializa Maurício do seu marialvismo.
Berta encarna o tipo romântico de mulher-anjo, definida explicitamente como tal. Mas esta angelicalidade também radica na associação feita por D. Luís entre Berta e a falecida filha Beatriz, de quem aquela é espelho físico-psicológico. Asserta Gabriela: “Berta para ele é raras vezes a filha do Tomé, é a amiga de Beatriz, é a imagem viva daquele anjo que ele ainda hoje chora” (1143).
Mas Berta não se limita aos dois imagotipos românticos de mulher-anjo e amante (no sentido latino) do protagonista. Em “Ideias que me ocorrem”, coevas da redação da obra, o Autor censura escritores julgando “que os amantes em literatura escusam de ter carácter próprio”, sendo antes “indispensável desenhar bem as feições características das personagens e dar-lhes um colorido de carnação que simule a vida.” (Dinis, s.d.:546-547).
Assim, o desenho das feições de Berta é feito pelo olhar de Maurício, enaltecendo-lhe a beleza física, logo tornada sinaleticamente moral: “Berta era uma rapariga de olhos negros e de boca graciosa, onde flutuava um gracioso sorriso expressivo ao mesmo tempo de alegria e de bondade. Havia nos movimentos, nos olhares e nos modos dela um misto da candura de uma criança e dos delicados instintos da mulher (…)” (962). E o “carácter próprio” simulador da vida assenta na complexidade psicológica de Berta, conjugando angelicalidade e desejo, criação aldeã e esmerada educação citadina. Ora, Berta assume o laborioso campo como sua “verdadeira pátria” (976), sendo a educação citadina motivo de troça local. Cria-se um “desajuste com o meio” (Araújo, 1971: 13), que ela intui e a entristece: desnivela-a de aldeões, conquanto honrados [Clemente], mas não lhe franqueia as portas da fidalguia minhota. Berta tranquiliza o pai, garantindo-lhe ser imune aos galanteios de Maurício, e tomando os dois por garantido o enfoque do honrado primogénito de D. Luís no trabalho. O cálculo sairá errado a pai e filha. E assim, Berta apaixonar-se-á pelo discreto e laborioso Jorge, preterindo Maurício, citadino nos gostos. Como Madalena d’A Morgadinha dos Canavais, que casa com Augusto e cura Henrique de Souselas. Lembre-se: Os Fidalgos subintitulam-se Crónica da Aldeia, encerrando a trilogia do romance campesino dinisiano, apologista da apaziguadora ruralidade produtiva. Ora, o monólogo interior é fundamental na revelação da complexidade de Berta. Questiona, por exemplo, a sua elogiada racionalidade quando atraída por Maurício: “Chamam-me uma rapariga de juízo. Não sei, não sei se o sou, não o posso saber, nem quero. Às vezes… desconfio de mim… receio… assusto-me” (Dinis, s.d.: 977). Ou desenvolve a “revolução moral” (1071), leia-se, sentimental – comprovando-se como personagem redonda –quando sabe a sua honra defendida por Jorge. Enfim, “Ideias que me ocorrem” indica figurarem nesta obra personagens que não saem “da órbita do verosímil” (Dinis, s.d.: 546), como Berta, acrescente-se, sempre descrita coerentemente, usando linguagem natural e sustentando ações verosímeis no contexto da Regeneração liberal. Aliás, a excecionalidade de Berta e de Jorge permite que o enlace “se possa verosimilmente interpretar como o encontro de duas almas” (Lepecki, 1979: 69).
Os obstáculos enfrentados por Berta, censurando a injustiça da imobilidade social, criam expectativa num romance que fora concebido para publicação folhetinesca, e o final feliz agrada à invocada “leitora”. Os Fidalgos da Casa Mourisca popularizaram-se: “dezenas de edições” (Rodrigues, 1994: 36), traduções, adaptações infantis e transposições (inclusive em banda desenhada por Carlos Alberto) que sempre respeitam o título original. Berta da Póvoa é interpretada por Etelvina Serra no filme mudo (1921) do francês Georges Pallu e por María Castelar na longa-metragem (1938) de Arthur Duarte. Na peça de teatro adaptada à televisão (1963) por Alice Ogando e realizada por Pedro Martins, revisitada pela RTP Memória (2010), a ordem do elenco é pertinente: Berta (Ivone Moura) aparece em terceiro lugar, depois de D. Luís e de Jorge e antes de Maurício.
Referências
ARAÚJO, Matilde Rosa.(1971, 14 de setembro). “A mulher na obra de Júlio Dinis”. Suplemento Cultura e Arte d’O Comércio do Porto. p.13.
DINIS, Júlio (s.d.). Obras de Júlio Dinis. Prólogo de Kol d’Alvarenga. Porto: Lello & Irmão.
LEPECKI, Maria Lúcia (1979). Romantismo e Realismo na obra de Júlio Dinis. Lisboa: Instituto de Cultura Portuguesa.
RODRIGUES, Ernesto (1994). “Introdução”, in Júlio Dinis, Os fidalgos da casa Mourisca. Crónica da aldeia. Lisboa: Ulisseia. 7-37.
VIEIRA, Cristina da Costa (2008). A construção da personagem romanesca: processos definidores. Lisboa: Colibri.
[publicado a 02-03-2016]