Frei Dinis da Cruz é o nome da personagem do religioso franciscano determinante na ação da “história da menina dos rouxinóis”, narrativa metadiegética entretecida nas notas de viagem que dão forma a Viagens na Minha Terra, de Almeida Garrett (1846). O drama protagonizado por Carlos e Joaninha tem como cenário o ameno vale de Santarém atravessado pelos confrontos entre liberais e absolutistas, entre 1832 e 1834.
Na “figura seca, alta e um tanto curvada” do “austero guardião de San’Francisco de Santarém” “abordoado em seu pau tosco” (Garrett, 2010: 177), homem de “crenças rígidas” e de “lógica inflexível” (196), se plasma o tipo fradesco que é inevitável fazer corresponder à imagem de desconfiança que o constitucionalismo projetava nas instituições clericais. Com efeito, no século XIX, o frade carrega no hábito o peso simbólico da sociedade do Antigo Regime em desintegração. O facto de constituir uma personagem fundamental da intriga parece, por isso, requerer do narrador/autor, que se identifica com o “nós” da causa liberal, uma justificação em jeito de captatio benevolentiae: “Eu não gosto de frades. (...) não os quero para nada, moral e socialmente falando” (179). Moral e socialmente falando, a consciência liberal do narrador abomina o frade. Porém, do ponto de vista artístico, a singularidade do seu traje favorece uma poetização dos espaços campestre e citadino. Além disso, a forte presença do monasticismo desde a fundação do reino torna necessário o seu aparecimento numa obra que, de acordo com o ideário do Romantismo, pretende ecoar o espírito nacional (185). Apesar da má reputação, a figura do frade surge valorizada no romance. Posto face a face com um segundo tipo oitocentista, o barão agiota e materialista, enquanto representante de um ideal de vida espiritual alienado do mundo, o frade é ironicamente visto como D. Quixote dos tempos modernos: “antes queria a oposição dos frades que a dos barões”, “tenho saudades dos frades – não dos frades que foram, mas dos frades que podiam ser” (182-183).
No domínio da conformação do tipo com a personagem garrettiana, convocando a vertente autobiográfica em diálogo com a elaboração do retrato, é possível entrever num certo Frei Dinis reminiscências de Frei Alexandre da Sagrada Família, tio e preceptor de Garrett (Monteiro, 2010: 51). Em sintonia com a manifesta admiração do autor pelo “venerando” tio (Garrett, 1829: 96), refere-se assim que Dinis era “homem extraordinário que juntava a uma erudição imensa o profundo conhecimento dos homens e do mundo em que tinha vivido até a idade de cinquenta anos” (Garrett, 2010: 199-200).
No processo de criação de suspense que envolve a evolução do drama trágico das Viagens, assistimos contudo ao esboroar da máscara social em que assenta o tipo. A imagem de intrepidez do frade que dirige imprecações ao Deus das Vinganças, contra Carlos e os liberais, sofre uma significativa mutação. Interessado em perscrutar o homem dentro do frade, o narrador desdobra, lentamente, o conflito interior que trespassa Fr. Dinis. A caracterização da personagem culmina no momento de anagnórise, em que o protagonista vem a saber que o religioso é seu pai. O leitor vê-o então humilhar-se aos pés do filho e ser amparado por Georgina, desfazendo-se em seguida num patético abraço a três, em plena cela do Convento de São Francisco: “O velho parecia uma criança mimada e sentida que se vai acalantando nos braços da mãe” (Garrett, 2010: 355).
Antes de aí chegar, são sucessivas as pistas através das quais o narrador homodiegético explora a ambiguidade entre exterior e interior, jogando quer com a subjetividade assinalada ao seu ponto de vista distanciado, quer com a perceção limitada da avó cega de Carlos e Joaninha, para quem Dinis, nas “alturas da perfeição evangélica”, possui “sobre-humanas forças” (219): “pareceu comover-se; mas aqueles nervos eram torçais de ferro temperado que não vibravam a nenhuma suave percussão” (194); “Ouvia-se ao longe (...) uns soluços sufocados... Seriam dele?” (226).
Partindo de várias interrogações, em que parece convidar o leitor a inquietar-se diante da austeridade do religioso, o narrador desenvolve a analepse em que esboça o retrato do homem um dia tornado frade: “Aquele coração (...) teria acaso, viva ainda (...) alguma fibra que vibrasse com recordações, com saudades, com remorsos do passado?" (200). A resposta à pergunta é afirmativa e, na casa do Vale, que o franciscano visita semanalmente, se colhe a sua explicação. Dinis de Ataíde fora um corregedor da comarca de Santarém que mantivera estreitas relações com a família da avó de Carlos, D. Francisca Joana. A súbita tomada de votos coincide com as mortes que, num curto espaço de tempo, afligem a família, a quem doa os seus bens. Neste ponto se estabelece o mistério que marca o percurso do frade, apenas desvelado na referida cena de reconhecimento. O leitor fica, pois, a saber que Dinis fora capaz de amar: amara a mãe de Carlos. Mas fora igualmente capaz de matar: em defesa própria, matara o marido e o cunhado desta, que por vingança lhe preparam uma emboscada na calada da noite.
Na caracterização física do frade destacam-se, como traço dominante, os olhos “sumidos e cavos”, que em momentos de tensão recuam “para dentro das órbitas descarnadas” (193). Na rigidez da figura ascética, introduz-se um outro elemento denunciador de instabilidade, o tremor nervoso: é o chapéu alvadio que lhe treme na cabeça, a voz que pronuncia, “tremendo mas com força”, “palavras terríveis (193). À medida que se aproxima o clímax da história, o semblante do frade velho assume feição caricatural, passando por uma progressiva desfiguração. Assim, no seu rosto desenham-se, geometricamente, os sulcos expressivos do sofrimento: “a pele já sulcada de fundos cuidados, arrugou-se e franziu-se toda em rugas cruzadas e confusas como se lhe tornassem numa grelha” (214).
Com a revelação do mistério, acentuam-se os traços cadavéricos de Frei Dinis, que surge “descarnado como um esqueleto” e “imóvel como uma estátua” (416). Estes atributos compassam-se, por sua vez, com a ideia de morte que se deduz do relato que faz do desenlace da história da menina dos rouxinóis. Em deriva metaléptica, na qual o narrador se insere na moldura bucólica da casa do Vale, dialogando com o frade, que por sua vez parece saído do livro, sela-se por fim o conto. Aliando a tragédia familiar ao drama nacional que constitui para si a instauração do constitucionalismo, afirma que “Morreu tudo”, “Aqui não vive senão o meu pecado, que Deus não perdoou ainda, nem espero” (417).
Não achando castigo capaz de punir a monstruosidade do seu pecado, Frei Dinis procura amortecer a dor do remorso com penitências e com a aspereza dos princípios católicos, que se esforça por reverberar mais alto do que os suspiros que lhe escapam da alma. Encarnando o crente que rejeita a intervenção do Deus de Misericórdia, o frade constitui, por outro lado, a personificação tangível do pecado da velha avó, que o imagina, qual “demónio vivo”, como tremendo “vingador sobrenatural” (415). Incapaz de avistar o perdão, Frei Dinis configura assim o arquétipo de um sentimento de culpa renitente, que se nutre em si mesmo. A caracterização temática do tipo, em Viagens na Minha Terra, associa-se, desta maneira, à representação dos recessos tortuosos e insólitos da interioridade humana.
Referências
GARRETT, Almeida (1829). Lyrica de João Minimo. Londres: Sustenance e Strech.
––––– (2010). Viagens na minha terra. Edição de Ofélia Paiva Monteiro. Lisboa: INCM.
MONTEIRO, Ofélia Paiva (2010). "Introdução", in Almeida Garret, Viagens na minha terra. Edição de Ofélia Paiva Monteiro. Lisboa: INCM.
[publicado a 13-06-2017]