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Hermengarda

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Autor: Ilustração de Lima de Freitas

Hermengarda (Alexandre Herculano, Eurico o Presbítero)

Hermengarda é uma personagem do romance Eurico o Presbítero, de Alexandre Herculano, inicialmente divulgado em folhetim no Panorama e na Revista Universal Lisbonense e publicado em livro em 1844.

Embora Hermengarda seja entendida por alguma crítica como personagem principal, a par do herói Eurico, já que a história de amor contrariado de ambos é pano de fundo da narrativa, a sua intervenção na ação e o escasso investimento na personagem, sobretudo se comparada com o protagonista, parecem afastar essa leitura. No entanto, a mulher é uma das personagens-chave para a economia da narrativa, seja porque é ela quem motiva a ação de outras personagens (principalmente Eurico e Pelágio), seja porque em muito contribui para a figuração do herói do romance, ou ainda porque a personagem está ao serviço da transmissão de uma mensagem por parte do narrador.

Sendo Eurico, o Presbítero um romance-tese (Reis, 1990: 25), em que o próprio autor assume, em prólogo, que a obra nasce “da ideia do celibato religioso, das suas consequências” (Herculano, s. d.: VI), Hermengarda é uma personagem relevante: é ela o objeto do amor do presbítero e da cobiça dos inimigos e causa do desgosto de Pelágio, seu irmão, que “não pudera salvar uma irmã que adorava e que Fávila, expirando, entregara em seus braços” (159).

O processo de figuração da personagem desenvolve-se quer através da voz do narrador heterodiegético, quer por aquilo que, a propósito dela, escreve Eurico, nos seus “hinos de amor e de saudade” (20) e nas cartas a Teodemiro, quer ainda através dos diálogos das personagens. A primeira referência a Hermengarda é feita logo no capítulo II, para justificar a vida religiosa de Eurico, que envereda pelo presbitério como consequência de Fávila, pai da amada, ter proibido o namoro entre os então jovens, segundo o próprio sacerdote, “porque nos seus cofres havia mais alguns punhados de oiro do que nos meus” (41). Desta forma, Hermengarda é, primeiramente, caraterizada de forma direta pelo narrador, que lhe traça a genealogia e a classifica como ingrata, “que parecera ceder sem resistência à vontade de seu pai” (9), o que pressupõe, desde logo, o seu caráter submisso (Paz, 2010: 112).

Hermengarda é uma personagem típica do período e do género em que a obra se insere: o romance histórico do romantismo. Ela é uma das personagens que, à semelhança de Eurico, saiu da imaginação do autor, convivendo com personagens referenciais (Monteiro, 2013: 17; Marinho, 1992: 101) e é o arquétipo da mulher-anjo, símbolo da pureza, da virtude e da inocência. Este tipo de personagens pode também ser encontrado em romances de escritores contemporâneos de Herculano, como Garrett e Camilo (Marinho, 2013: 165). Deste modo e ao contrário do que acontece com Eurico, Hermengarda é uma personagem bem descrita em termos físicos, sendo a sua beleza salientada em vários momentos do texto, correspondentes a fases distintas da sua vida. A este propósito, diz Vitorino Nemésio, na introdução à edição crítica que aqui se segue: “Hermengarda é uma figura feminina de lírico, diáfana e simbólica. Se nem sempre age na intriga como mulher de carne e osso, suporta poeticamente a responsabilidade de média do sexo fraco” (Nemésio, s. d.: XXVII).

Desta forma, Hermengarda encontra semelhanças com as personagens femininas dos outros dois romances do autor: Beatriz, de O Monge de Cister, e Dulce, de O Bobo (Monteiro, 2013: 16-17; Marinho, 1992: 110), o que pode ser explicado pela inspiração que Herculano vai, assumidamente, colher a Walter Scott. Apesar de serem mulheres-anjo, elas são “heroínas românticas sui generis”, já que “se pautam por valores que se aproximam da fronteira entre o humano e o divino” (Marinho, 1992: 170). No que a Hermengarda diz respeito, estamos a falar dos atos heroicos que comete: tanto quando se dispôs a atravessar uma Espanha em guerra para ficar junto de seu irmão, como quando, em duas ocasiões distintas, prefere a morte à desonra – no convento, aceitando o mesmo destino das virgens que a abrigam (que apenas sabial que ela é “uma das mais nobres donzelas de Espanha”; Herculano, s. d.: 126) e, após o rapto pelo amir Abdulaziz, quando este a quer desonrar. Contudo, neste último caso, a opção pela morte é, segundo Nemésio, “um heroico estratagema na esperança de a virem salvar” (Nemésio, s. d.: XIV). Convém aqui ressalvar que, nos capítulos XII e XIII, a identidade de Hermengarda nunca é revelada, o que confere à personagem uma certa aura misteriosa, condizente com a do seu par Eurico: a donzela chega ao convento pela mão de dez cavaleiros godos, que pedem para ela abrigo no Mosteiro da Virgem Dolorosa, entre as “virgens inocentes” (121), das quais ela se destaca, tanto em termos físicos – “junto da monja um vulto de mulher vestida de branco sobressai no meio das virgens cobertas de luto” (146) –, como porque é das mulheres a única que não morre.

Hermengarda é também a causadora de uma das lutas entre cristãos e muçulmanos, já que esta é ordenada por seu irmão, Pelágio, apenas com o intuito de a salvar. Este episódio, que ocupa os capítulos XV e XVI do romance, é central quer para a figuração da própria donzela, quer para a heroicização de Eurico, que aqui desvenda ser ele o Cavaleiro Negro e empreende um dos seus mais corajosos atos: atravessa um abismo, carregando nos braços Hermengarda desmaiada. Por fim, o final trágico da donzela (a loucura), determinado pela morte de Eurico, revela a única mudança nas ações de Hermengarda, que vivia conformada, dando-se aqui “uma transformação do seu comportamento que a leva à loucura” (Marinho, 1992: 109-110).

 

Referências

HERCULANO, Alexandre (s. d.). Eurico o Presbítero. Monasticon, Tomo I. Lisboa: Bertrand.

MARINHO, Maria de Fátima (1992). “O romance histórico de Alexandre Herculano”. Revista da Faculdade de Letras: Línguas e Literaturas. Porto. II série. 9: 97-118.

MONTEIRO, Ofélia Paiva (2013). “Herculano: da arte narrativa do ficcionista”, in Maria de Fátima Marinho, Luís Carlos Amaral e Pedro Vilas-Boas Tavares (coord.), Revisitando Herculano no bicentenário do seu nascimento. Porto: Faculdade de Letras. 7-18.

NEMÉSIO, Vitorino (1972). “Eurico: História de um Livro”, in Alexandre Herculano, Eurico o Presbítero. O Monasticon, Tomo I. Lisboa: Bertrand. vii-lv.

PAZ, Demétrio Alves (2010). “Eurico, um romântico idealista”. Ciências & Letras. 47: 107-121.

REIS, Carlos (coord.) (1990). Literatura Portuguesa Moderna e Contemporânea. Lisboa: Universidade Aberta.

Inês Fonseca Marques