• Precisa de ajuda para encontrar algum conteúdo?

Clara

Clara-e-Margarida-por-Roque-Gameiro.jpg
Autor: Roque Gameiro
clara.jpg
Autor: Ilustração de Roque Gameiro
margarida_e_clara.jpg
Autor: Márcia Maria como Margarida e Georgia Gomide como Clara.

Clara (Júlio Dinis, As Pupilas do Senhor Reitor)

Personagem do romance As Pupilas do Senhor Reitor (1867), de Júlio Dinis, Clara é o contraponto da sua irmã Margarida (Guida). Mais nova das do Meadas, ela é retratada da seguinte forma: “Uma rapariga de cintura estreita, mãos pequenas, formas arredondadas, vivacidade de lavandisca (...). As mangas da camisa alvíssima, arregaçadas, deixavam ver uns braços bem modelados, nos quais se fixavam os olhos com insistência significativa. Um largo chapéu de pano abrigava-a do ardor do sol e fazia-lhe realçar o rosto oval e regular de maneira muito vantajosa. De quando em quando, levantava ela a cabeça e sacudia, com um movimento cheio de graça, a trança mais indomável, que, desprendendo-se-lhe do lenço escarlate que a retinha, parecia vir afagar-lhe as faces animadas, beijar-lhe o canto dos lábios, efetivamente de tentar” (Dinis, s.d.: 29).

Coprotagonista do romance, mesmo que alguns degraus abaixo de Margarida, Clara é dona de um bom coração, ainda que com traços de frivolidade, e fonte de preocupação para a irmã pelo seu temperamento pouco reservado e por vezes irrefletido. Essas características fazem dela uma personagem bastante interessante, porque Júlio Dinis aprofunda questões pouco trabalhadas em outras obras em personagens semelhantes; pela posição que ocupa na vida da outra protagonista, o destaque de Clara é mais significativo.

O narrador conta-nos que ela é vaidosa, quando conhece Pedro; bem-humorada, no gosto por festas e por estar frequentemente sorrindo; astuta, quando desafia o futuro noivo na improvisação à beira do rio; ingénua, quando tarda a perceber as investidas de Daniel, seu futuro cunhado. Outra característica de Clara é a sinceridade com que manifesta o que pensa ou sente, sem pensar nas implicações do que diz, porque “a vida para ela era o presente. Raras vezes lhe lembrava o passado; o futuro não lhe tomava muitos momentos de meditação também. As palavras e os actos irreflectidos eram nela frequentes. De nada suspeitava. A sua confiança em todos e em tudo chegava a ser perigosa (...). Parecia muitas vezes afrontar a opinião do mundo, e não era por a desprezar, mas porque não pensava nela” (75-76).

O narrador sugere que Clara não dá demasiada importância ao que pensa a sociedade, o que remete o leitor para a desafiadora ideia romântica de enfrentamento pelo homem diante do mundo, como no quadro de Caspar David Friedrich, O viajante sobre o mar de névoa, porém em tom bastante distante da gravidade romântica do início do século.         

O temperamento destemido de Clara é consciente, pois as tentativas de aproximação movidas pela inconveniência e leviandade de Daniel foram repelidas quando ela reconheceu o temperamento perigoso do futuro cunhado. A superficialidade que aparenta é concebida de maneira equilibrada, porque ainda em criança Clara percebia a distinção de tratamento que a mãe lhe dava a ela e à irmã; pode-se entender também que ela reconhece em Pedro alguém em quem pode confiar tanto quanto em Margarida. O firme e reservado Pedro faz dele o parceiro ideal pelo que representa como um contraponto à personalidade expansiva da jovem herdeira.

Quando o foco narrativo está voltado para Clara ela é, na maior parte das vezes, objeto de preocupação para Guida, mas é importante notar que Júlio Dinis faz das irmãs personagens com um forte sentido de cumplicidade, seja pelos laços familiares, seja porque uma reconhecia na outra o complemento para as suas existências. Clara é quem desperta o que existe de melhor e de mais humano em Guida, inclusive na passagem em que esta sente uma ponta de ciúmes da irmã.

O temperamento ameno de Clara demonstra a profundidade dos sentimentos e da correção de caráter de Guida, mas também oferece à irmã a oportunidade de perceber que existe uma outra maneira de estar na vida. Uma maneira de viver em que a tristeza e a abdicação não são a tónica e que é possível e desejável viver com menos preocupações e maior leveza.

As Pupilas do Senhor Reitor são um romance fartamente adaptado para o cinema e para a televisão. Clara foi representada no cinema em três oportunidades: em 1924, interpretada pela atriz Maria de Oliveira na adaptação realizada por Maurice Mariaud. Em 1935, foi a vez de Maria Paula interpretá-la, na versão de Leitão de Barros; finalmente, Isabel de Castro deu corpo e voz à personagem em 1961 no filme de Perdigão Queiroga.

A TV brasileira realizou duas adaptações da obra. Na versão de 1970, emitida pela TV Record, Clara foi interpretada pela atriz Georgia Gomide; em 1994, o SBT fez um remake do romance e escalou a atriz Luciana Braga para o papel da irmã de Margarida.

 

Referência

DINIS, Júlio (s.d.). "As pupilas do Senhor Reitor (Crónicas da aldeia)", in Obras de Júlio Dinis, vol. I. Porto: Lello & Irmão.

 

[publicado a 08-10-2016]

Roberto Loureiro