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Lúcio Vaz

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Autor: Capa Projecto Adamastor

Lúcio Vaz (Mário de Sá-Carneiro, A confissão de Lúcio)

Lúcio Vaz é o protagonista e narrador autodiegético da novela A confissão de Lúcio, publicada por Mário de Sá-Carneiro em 1914. O pretexto intradiegético para a narrativa é a saída da prisão do narrador, que cumprira uma pena de dez anos por um crime que garante não ter cometido. Se só agora revelava os factos que explicavam o falecimento do seu amigo Ricardo de Loureiro, é porque estes, por escaparem à lógica do conhecimento humano, de nada lhe teriam servido para provar a sua inocência no julgamento que o condenara.

Para além de ser contada na primeira pessoa, a novela acerca-se também tangencialmente da autobiografia, sendo possível, por um lado, associar tematicamente a sua história a linhas estéticas fundamentais da chamada geração do Orpheu, e, por outro, reconhecer nalgumas personagens traços psicológicos do próprio Sá-Carneiro e, também nitidamente, de pelo menos um dos seus parceiros geracionais.

A ação começa em 1895, quando Lúcio, já então um novelista célebre em Portugal, se encontra “estudando direito na Faculdade de Paris, ou melhor, não estudando” (Sá-Carneiro, 2010: 299). O seu inseparável amigo na capital francesa é, nesse momento, o escultor avançado (adepto do Selvagismo) Gervásio Vila-Nova, dotado de um perfil comportamental que claramente o aproxima de Santa-Rita Pintor, identificação assumida pelo próprio autor em duas cartas a Fernando Pessoa, na primeira das quais afirma que vai escrever uma carta a Gervásio Vila-Nova, quando o destinatário é Santa-Rita Pintor, enquanto na segunda assegura que este não lhe perdoara o que escrevera n’A Confissão de Lúcio (Sá-Carneiro, 2015: 386 e 402). Mas muito rapidamente uma outra personagem portuguesa, acabada de chegar à cidade-luz, precisamente Ricardo de Loureiro, eclipsará por completo Vila-Nova no interesse e no afeto de Lúcio Vaz.

Se o narrador já era indiciariamente um alter ego de Mário de Sá-Carneiro, essa condição afigura-se ainda mais evidente nesta nova personagem, o atormentado e genial poeta de Brasas, cujo sofrimento moral se materializava em padecimento físico: “É horrível! A minha alma não se angustia apenas, a minha alma sangra. As dores morais transformam-se-me em verdadeiras dores físicas, em dores horríveis, que eu sinto materialmente — não no meu corpo, mas no meu espírito” (Sá-Carneiro, 2010: 323). Apesar de o narrador asseverar que ele e o seu novo amigo eram “duas criaturas muito diversas” irmanadas por duas almas que se compreendiam na perfeição (324), as angústias, os medos, as obsessões, as ânsias ou as fantasias de Ricardo de Loureiro são absolutamente idênticas às reveladas na poesia de Mário de Sá-Carneiro: “Nada me encanta já; tudo me aborrece, me nauseia. Os meus próprios raros entusiasmos, se me lembro deles, logo se me esvaem — pois, ao medi-los, encontro-os tão mesquinhos, tão de pacotilha... Quer saber? Outrora, à noite, no meu leito, antes de dormir, eu punha-me a divagar. E era feliz por momentos, entressonhando a glória, o amor, os êxtases... Mas hoje já não sei com que sonhos me robustecer. Acastelei os maiores... eles próprios me fartaram: são sempre os mesmos — e é impossível achar outros...” (318). As duas personagens têm ainda em comum com Sá-Carneiro o amor pelas grandes metrópoles, e muito particularmente por Paris.

Contudo, passados dez meses após o estabelecimento desta relação de amizade, Ricardo abandona a capital de França, regressando inesperadamente a Lisboa, onde Lúcio o reencontra, um ano depois, supostamente casado com Marta, uma mulher misteriosa e cuja materialidade física frequentemente se desvanecia sob o olhar perplexo do protagonista-narrador, que também não compreendia que Ricardo parecesse estimular o contacto íntimo entre o amigo e a esposa. Quando finalmente o narrador e Marta sucumbem ao desejo sexual, iniciando uma relação amorosa que se prolongará por vários meses, na cabeça de Lúcio a imagem da amante funde-se continuadamente com a de Ricardo. Atónito (sobretudo depois de descobrir que não era o único amante de Marta), é a sua vez de voltar apressadamente a Paris.

Quando tempos depois os dois amigos voltam a encontrar-se em Lisboa. Ricardo tem, finalmente, a oportunidade de explicar a Lúcio que Marta não é uma pessoa real, mas uma projeção da sua própria personalidade, destinada a servir de elo de ligação física entre os dois: uma sexualização da sua alma, materializada para possuir Lúcio, porque não concebia a genuína amizade sem a posse física do outro. Perante o relativo fracasso da experiência, pois Marta acabara por afastar mais do que aproximar os dois amigos, Ricardo de Loureiro toma a decisão de se livrar da companheira, mas, quando se dispõe a fazê-lo disparando sobre ela, é ele próprio que morre, deixando depositado junto aos pés de Lúcio o revólver ainda fumegante.

Os modelos literários da ficção de Sá-Carneiro são fundamentalmente autores românticos tardios e finisseculares que, como Edgar Alan Poe, Barbey d’Aurevilly, Jean Lorrain ou Théophile Gautier, escreveram contos e novelas de teor fantástico e misterioso. O tema do duplo domina semanticamente obras como Avatar, de Gautier, ou William Wilson, de Edgar Allan Poe. É esta obviamente a temática da ficção do autor de A Confissão de Lúcio, pelo que é possível estabelecer nexos evidentes entre esta novela e vários contos do mesmo autor, havendo mesmo personagens como Luís de Monforte e Raul Vilar, respetivamente protagonistas de “O incesto” e “Loucura” (contos integrantes de Princípio, 1912), que migraram para A Confissão de Lúcio, onde fazem parte do pequeno círculo de relações de Lúcio e Ricardo. Mais próximo de Lúcio, o protagonista de “Ressurreição” (Céu em Fogo, 1915), Inácio de Gouveia, é um famoso romancista português, residente em Paris, que conhece uma atriz francesa, Paulette Doré, pela qual se apaixona, no ateliê de um pintor cubista, Manuel Lopes. Depois de uma breve relação amorosa, Paulette substitui no seu coração o romancista português pelo dramaturgo gaulês Étienne Dalembert, que acabará por revelar-se um alter ego de Inácio, tal como Ricardo é um alter ego de Lúcio. Através do abraço final dos corpos nus de Étienne e Inácio, materializa-se, no conto supracitado, a fusão material e espiritual do Eu e do Outro, defeituosamente concretizada no caso de A Confissão de Lúcio.

Ainda que Sá-Carneiro e Fernando Pessoa tenham entendido e vivido de modo diverso o conceito de alteridade (mais cerebralmente Pessoa; mais sensitivamente Sá-Carneiro), é indesmentível a existência de um elo de ligação entre Lúcio Vaz, o seu alter ego Ricardo e a obra pessoana, vínculo que se traduz, por exemplo, na epígrafe colocada no início de A Confissão de Lúcio e extraída de um texto publicado em 1913 pelo criador dos heterónimos na revista A Águia, “Na floresta do alheamento”, com indicação de pertencer ao Livro do Desassossego: “… assim éramos nós obscuramente dois, nenhum de nós sabendo bem se o outro não era ele-próprio, se o incerto outro viveria…” (apud Sá-Carneiro, 2010: 295). Em sentido inverso, a novela de Sá-Carneiro é reconhecidamente um hipotexto do romance de José Régio O Jogo da Cabra Cega, publicado em 1934, sendo óbvios os paralelismos, inclusivamente nas insinuações homoeróticas, entre as personagens regianas Pedro Serra e Jaime Franco e os protagonistas masculinos de A Confissão de Lúcio

A personagem transcende as páginas de Sá-Carneiro ganhando uma adaptação teatral pelas mãos de André Murraças (2020).

 

Referências

SÁ-CARNEIRO, Mário de (2010). Verso e Prosa. Edição de Fernando Cabral Martins. Lisboa: Assírio & Alvim.

____ (2015). Em Ouro e Alma — Correspondência com Fernando Pessoa. Edição de Ricardo Vasconcelos e Jerónimo Pizarro. Lisboa: Tinta da China.

 

António Apolinário Lourenço