“São Cristóvão” compõe, junto com “Santo Onofre” e “São Frei Gil”, as Lendas de Santos, escritas por Eça de Queirós (1845-1900) em data incerta, durante a década de 1890, e publicadas postumamente, em 1912, por Luís de Magalhães, em Últimas Páginas.
Cristóvão nasce disforme, escuro e enorme, tendo a aparência de um monstro, “(...) todo ele parecia uma raiz sombria, raiz de árvore estranha, ainda negra da terra negra que fora arrancada. E nem gemia. Era como o rudimento de um vegetal” (Queirós, 1945: 30). Intimamente conectadas com as características físicas, suas marcas de santidade, manifestadas desde a infância, são relacionadas a elementos naturais, simples e alegres, em oposição a um modelo de santidade ascético, contemplativo e institucional, representado ao longo da obra pelo contato de Cristóvão com religiosos de mosteiros e eremitérios, que viviam sob dogmatismos e transpareciam tristeza, orgulho e egoísmo.
A aversão a essa realidade e a convivência com um casal de namorados apaixonados, bem como com diversos religiosos mendicantes, que difundiam um Jesus bastante humanizado, adepto incondicional dos mais necessitados, fazem Cristóvão muito cedo decidir-se pelo trabalho desinteressado, dedicado aos miseráveis e excluídos. Entretanto, muitos dos que ele ajudava, depois de utilizarem-se de suas forças, o desprezavam, ultrajavam e humilhavam, sempre impelidos pelos poderosos das localidades que invejavam Cristóvão por conta da popularidade naturalmente adquirida. Nesses reveses, a admiração por Jesus aumentava, pois ele se reconhecia nas perseguições e incompreensões pelas quais o mesmo passara.
O ponto culminante de sua doação plena se dá quando a personagem adere à causa das Jacqueries, uma turba de revoltados violentos que, descontentes com a vida miserável e de exploração, exigiam dos reis uma resolução para a situação abjeta à qual estavam sujeitos. Sob os auspícios do “bom gigante”, o grupo de revoltosos transformou-se: “Uma doçura ia tomando aqueles corações da turba miserável” (Queirós, 1945: 156). Todavia, ao envolverem-se em uma batalha sangrenta contra cavaleiros, muitos morrem, e Cristóvão acaba ferido, à beira da morte.
É nesse ponto da narrativa que o protagonista tem duas visões: uma na qual os Jacques, mortos em batalha, renascem mais numerosos, e saem vitoriosos no embate contra os cavaleiros; outra, em que um indivíduo, cuja descrição indica ser um anjo, cura-lhe as feridas e lhe dá novo ânimo para que volte a percorrer o mundo em busca de novas pessoas a quem servir, pois, segundo o narrador, “a sua ternura abrangia o universo” (Queirós, 1945: 174). Pondo-se em marcha, “o bom gigante” chega a um rio cuja travessia era muito difícil. Tão logo percebe as dificuldades das pessoas em atravessá-lo, prontifica-se em ajudar. Será em tal ofício que permanecerá até à velhice, transportando homens, animais, fardos de qualquer tipo, de uma margem a outra do rio e sofrendo, invariavelmente, insultos, desaforos, injúrias e humilhações.
Em uma noite, o “carregador”, já em idade avançada, é surpreendido por uma criança perdida que pede para ser transportada à outra margem, onde ficava a casa de seu pai. Concluída a travessia, Cristóvão caiu trôpego, quase morrendo. Sentiu, então, suas mãos presas nas do menino, que reconheceu ser o menino Jesus “pequenino como quando nasceu no curral, que docemente, através da manhã clara, o ia levando para o céu” (Queirós, 1945: 184). E dessa forma miraculosa finda a extensa história.
Cristóvão enquanto “atravessador” do rio, tendo um dia entre as suas cargas o próprio menino Jesus, é uns dos poucos acontecimentos da ficção que condizem com as narrativas tradicionais sobre o santo venerado pelo Catolicismo. As incessantes críticas à religião e a religiosos “institucionais”, bem como a apologia positiva a um modelo de santidade peculiar (Tupiassu, 1992), com cariz franciscano (Cortesão, 1949), calcado exclusivamente no serviço à coletividade (Nery, 2005), deixam transparecer que a instituição religiosa continuou a ser um dos alvos prediletos de Eça de Queirós em sua proposta para melhorias e mudanças na sociedade; uma proposta que perdurou desde os tempos da Geração de 70 até às últimas produções do escritor.
Assim como outras obras de Eça de Queirós, o texto em questão também foi objeto de representação transmediática em banda desenhada. Com interpretação gráfica de Eduardo Teixeira Coelho (1919-2005) o número 1388 de O Mosquito deu início a "São Cristóvão", que ficou incompleto pela interrupção da publicação.
Referências
CORTESÃO, Jaime (1949). Eça e a questão social. Lisboa: Seara Nova.
NERY, Antonio Augusto (2005). Santidade e humanidade: aspectos da temática religiosa em obras de Eça de Queirós. Dissertação de Mestrado. UFPR: Curitiba.
QUEIRÓS, Eça de (1945). Últimas páginas. Porto: Lello e Irmãos.
TUPIASSU, Amarilis (1992). Eça de Queirós e os desassossegos da santidade. Belém: Editora da Universidade Federal do Pará.