António dos Santos Lopes (por alcunha, Borralho) é o protagonista-narrador do romance Manhã submersa (1954), de Vergílio Ferreira. Migrante de outro universo ficcional do autor, Vagão J, como prometido lá (“Quem vem pôr um fim à história dos Borralhos? [...] Talvez, António Borralho, tu a escrevas um dia”; Ferreira, 1946: 228), toma a pena para continuar essa história, mas não exatamente voltado para a vida (agrária, injusta e sacrificada) da sua família, mas para a sua própria, “vivida desde o sangue” (Ferreira, 2007: 9), conforme explica numa espécie de introdução, onde sinaliza, em última instância, a própria metamorfose estética da obra vergiliana – de uma concepção neorrealista para uma existencialista.
Como narrador, domiciliado em Lisboa, já perto dos seus 35 anos, António relembra seu percurso existencial como seminarista, mais ou menos entre os 12 e os 15 anos: “Falo agora à memória destes últimos vinte anos e pergunto-me que destino atravessou a minha vida além desse pavor” (15). Como personagem, movimenta-se e debate-se entre a sua aldeia de origem, Castanheira (casa da mãe, de D. Estefânia), e o seminário, próximo à Covilhã, numa divisão que a própria formatação capitular do romance muitas vezes sublinha. Mesmo que a “bruma da distância” levante-se sobre tudo, o passado ainda “comove” (85) intensamente o adulto, estabelecendo-se, assim, uma relação “elástica e dialética” (Dal Farra, 2012: 168) entre história e discurso: “tudo o que me ofendeu me ofende, tudo o que me sorriu sorri” (Ferreira, 2007: 85). Predominantemente, a narração de António segue a sucessão cronológica de alguns episódios marcantes, envolvidos por um denso halo afetivo e emocional, capaz de cativar a empatia do leitor.
A história de António move-se pela luta entre forças externas (familiares, sociais), que lhe impõem a formação sacerdotal, e motivações internas (a falta de vocação, o anseio de liberdade), que resistem a esse destino. É na casa de D. Estefánia, uma espécie de madrinha rica que almeja possuir um padre particular, que seu destino é “talhado” (11), ou, conforme lhe diz o Reitor, graças à piedade dela que se liberta “da sorte da [sua] raça” (43). Oprimida pela miséria, sua mãe legítima, tal como familiares de outros seminaristas, deixa-se iludir pela esperança de o filho alcançar um status melhor e, de algum modo, proteger os seus.
Já no capítulo de abertura, que conta a sua primeira viagem ao Seminário, conhecemos um menino bastante ansioso e assustado: “Tudo para mim era estranho e ameaçador” (12). O seminário e as autoridades clericais são, então, transfigurados pela sua percepção aterrorizada, dando a medida do quanto se sentia constrangido e frágil: “O salão era excessivamente grande para mim, os cães ladravam para o agouro das trevas, eu estava só no mundo” (30); “o que mais me aterrorizou foi aquela súbita presença invisível do Prefeito, vinda do fundo da noite, imensa [...] rondando-nos de sombra e de ameaça” (24). De certo modo um efeito da fantasia infantil, essa representação fantasmagórica do mundo à sua volta diz muito também de todo um imaginário religioso ameaçador (“eram imagens roscadas de terror, demônios vesgos, de olhos sulfúricos, torturas estriadas de inferno, relinchos esqueléticos de dentes” (73)) com que sua sensibilidade é educada.
O pavor de António se justifica, na história, sobretudo, pelas várias situações de violência a que ele e os colegas seminaristas são submetidos, a qualquer sinal de desobediência ao “Regulamento”. Sujeito a uma disciplina militar, a uma rígida ordem hierárquica (são os exércitos, as hostes, os partidos; os generais, os cabos, os soldados, os caixas) e a um sistema de ensino arcaico, baseado na competividade agressiva e na exposição humilhante dos mais fracos, Borralho sente-se vigiado por todos os cantos, como se a qualquer momento pudesse ser surpreendido em falso, traído ou delatado aos superiores. Tal grau de opressão (permanente mesmo nas relações da aldeia) acaba por desenvolver em si um sentimento constante de aflição e angústia, marca indelével de toda sua recordação.
Em resposta a essa lógica afetiva extremamente agressiva para sua identidade em formação, António vai adotando alguns subterfúgios psicológicos, evidentes, por exemplo, no modo como reage emocionalmente aos insultos recebidos por seus companheiros de “desgraça”, estabelecendo com eles uma espécie de identificação solidária. Mas é a amizade desenvolvida com alguns colegas que mais contribui para o seu fortalecimento emocional e para a sua aprendizagem. Gama, seu companheiro de viagem e de solidão, é o primeiro que lhe confessa não ter vocação e que assume francamente a vontade da revolta. Escondido sob a identidade de um célebre bandido da Beira, deita fogo no Seminário e põe todos em alvoroço até ser pego e expulso dali, como almejava, assim transmitindo um importante exemplo de coragem a António: “Tinha uma inveja surda do meu amigo, que assim pudera libertar-se de tudo” (118). Gaudêncio, em quem sentia salvar-se “alguma coisa da pureza humana”, além de provocar em si uma dúvida essencial (“E se Deus não existisse?” (192)), deixa-lhe o ensinamento mais doloroso – do enfrentamento da morte, da perda de um ente querido –, quando sucumbe a uma epidemia gripal. Ao enterrar o amigo, António como que soterra também sua cobardia e renasce com “uma vontade animal de conquistar a vida” (207). Então, em meio aos festejos da Páscoa na casa de D. Estefánia, num ato de loucura, explode uma bomba na sua própria mão, automutilando-se, mas assim livrando-se definitivamente da sua vida no claustro.
António figura, portanto, o processo de formação e de autoconhecimento de um jovem que, progressivamente, vai opondo-se à disciplina religiosa e moral recebida e tomando as rédeas da própria existência. Bastante emblemáticos dessa superação são os embates que trava com o Reitor, com D. Estefânia, com a mãe, até, enfim, assumir que não tem vocação para padre: “Quero ser um homem! Quero ter uma mulher” (186). Essa última afirmação deriva também de um dos conflitos mais angustiadamente vividos por António – a repressão do desejo pelo ser feminino. A visão de pecado e de perdição que a mulher assume em sua trajetória é superada somente nos últimos parágrafos do romance, numa conclusão já próxima do tempo da escrita, quando anuncia o encontro inesperado com uma “estranha e bela rapariga” (216). Só então o leitor terá contato com a revelação de uma esperança, um apelo “invencível de vida e de harmonia” (217), abrindo caminho em meio ao terror provocado por uma engrenagem social injusta e por uma educação violenta, denunciadas enfaticamente pela recordação emocionada de António.
Borralho reaparecerá como protagonista do longa-metragem "Manhã submersa" (1979), dirigido por Lauro António, que, inclusive, coloca o próprio Vergílio Ferreira no papel do Reitor do Seminário.
Referências
DAL FARRA, Maria Lúcia (2012). “'Manhã submersa': um narrador nas jazidas do tempo”. Letras: Santa Maria. 22 (45): 165-175.
FERREIRA, VERGÍLIO (1946). Vagão J. Lisboa: Portugália.
______ ([1954] 2007). Manhã submersa. 26ª ed., Lisboa: Bertrand.
[publicado a 31-08-2020]