Rosa Maria é a protagonista da novela de José Régio, Davam grandes passeios aos domingos, publicada em 1941, sendo incorporada, em 1968, na 3ª edição de Histórias de Mulheres.
Na dedicatória do livro, o autor escreve que este é o seu “primeiro retrato simpático de rapariga” (Régio, 1941: 8). Todavia, o narrador não apresenta um retrato com moldes realistas, pretendendo delinear os traços físicos da personagem; prefere levar a cabo a “configuração de uma personalidade” (Reis, 2018: 431) através de dispositivos de “conformação acional” (Reis, 2018:166) e de dispositivos ficcionais baseados nas atitudes, crenças e ideias de Rosa Maria.
O título da narrativa justifica-se a partir do gosto que a personagem desenvolve por “certos livros de intricado enredo” com estampas, dos quais Rosa Maria “dizia sempre: «as figuras»” (41), em particular a estampa que “representava uma curva de estrada perdendo-se entre campos rasos, com um pobre e alegrezinho casal nos longes do horizonte, aconchegado entre arbustos”, onde se podia ler um pequeno letreiro: “«Davam grandes passeios aos domingos»” (42).
A novela inicia-se, no começo dos anos 30 do século XX, com a chegada da personagem à estação de comboios de Portalegre, vinda de Viana do Castelo, logo após a morte de sua mãe. Acolhida em casa de sua tia Alice, Rosa Maria ensina a prima Lá-Lá a tocar piano, apercebendo-se, desde logo, de que cada pessoa desempenha escrupulosamente o papel que as “conveniências ou circunstâncias lhe haviam distribuído” (15), não havendo, pois, alterações na hierarquia familiar e social. Isso faz de Rosa Maria a prima pobre e órfã, mulher sem perspetivas de futuro.
Durante o período de luto por sua mãe, Rosa Maria revela-se uma personagem contraditória e profundamente melancólica e triste, soluçando e chorando fechada no seu quarto, consciente da sua pobreza e solidão, ao mesmo tempo que sente despontar a paixão por seu primo Fernando. Revelando muita “puerilidade, muita ingenuidade, muita leviandade”, Rosa Maria sente desprezo e gratidão pela família que a acolheu, não deixando de “vagamente se lhes sentir superior”, para logo de seguida, “por uma censura interior mal consciente”, acusar-se de “ingrata e presumida”. Todas estas atitudes contraditórias revelam uma personagem complexa que, através dos dispositivos de conformação acional, deixam antever o seu “perfil psicológico, ideológico ou moral” (Reis, 2018: 168).
Ao aperceber-se da sua paixão por Fernando, Rosa Maria adota um comportamento narcisista e caprichoso, recuperando o gosto “de se alindar” (46). A paixão platónica que vai desenvolvendo por seu primo, através dos seus pensamentos e dos seus anseios, traduz uma personalidade moldada por um contexto de origem económica e cultural marcadamente pobre, onde a estratificação social dita as regras.
É durante o Entrudo, na casa de férias de seus tios, a casa da Serra (capítulo IV), que a ação atinge o momento revelador da personalidade de Rosa Maria. Aceitando a proposta da tia-avó Vitória (usar um dos seus vestidos de gala no baile noturno), Rosa Maria, por meio de um monólogo interior, afirma-se como protagonista de nervos sensíveis, contraditória e romântica: “«Ainda não és nenhuma velha! Pois não, minha tia; não sou. Sou mais velha do que ele, mas ele gosta de mim… Gosta de mim, bem sei! não tarda a dizer-mo! Apesar de eu ser pobre e ter mais quatro ou cinco anos…!»” (58). Novamente, a personagem aparece sorrindo, já de vestido de baile, “mirando-se em corpo inteiro no espelho” (61). Com o sucesso da sua presença, Rosa Maria parece abandonar-se ao vórtice da mundanidade, através do acesso que o leitor tem, por meio da focalização interna, aos seus pensamentos (cf. 68). Contudo, as personagens femininas que a observam realçam a sua pobreza e orfandade, assim como a sua arrogância: para elas, Rosa Maria “é uma rapariga sem posses, recolhida por caridade” (73).
A ingenuidade da personagem e a sua paixão romântica pelo primo levam a um desenlace esperado e inevitável. Nos jardins da casa, durante uma pausa, Fernando, embriagado, dirige a palavra a Rosa Maria, confessando-se seu admirador, realizando, assim, os anseios da protagonista. Contudo, o seu “bafo, muito perto, incomodava-a, ansiado e quente, cheirando a vinho”; e a sua tentativa de a apertar contra o seu peito não só lhe causou pânico: ao mesmo tempo, Fernando pôde ver “muito perto dos seus uns olhos de louca” (91).
A partir deste momento, o narrador refere uma personagem que “envelhecera e emagrecera que parecia outra” (97), e o seu amor por Fernando “esfarrapara-se como um fumo” (102). Todos os atributos físicos, com exceção da descrição do colo do seio e da cor da pele, são elaborados pelas ilustrações de Lima de Freitas, que nos apresenta uma jovem mulher de longos cabelos negros e de olhos grandes, também eles negros e expressivos; assim, são preenchidos os espaços deixados em branco por José Régio, dando-se um outro alcance à personagem.
A leitura de novelas e romances de gosto romântico ocupa especial destaque na figuração de Rosa Maria, assim como no desenrolar e desenlace da ação. Ao recordar-se dos tempos passados, a personagem evoca as tardes em que “lia romances a si própria e à mãe. (…) Bons livros como os de Camilo, Júlio Dinis, (os Eças tinham sido guardados pela mãe) Victor Hugo e Balzac traduzidos (…). Ainda outros com nomes russos, alemães…” (40). A propensão para o sonho, para o devaneio e para a ingenuidade e até uma certa pureza advêm, portanto, das leituras de toda a constelação literária de oitocentos, excetuando Eça de Queirós, aqui realçado como impróprio para a educação feminina. Já no final da novela, em conversa com sua tia, Rosa Maria chega à conclusão de que está mudada, pois “era demasiado ingénua… além de ter lido muitas novelas” (109). Resta-lhe, portanto, a hipótese de permanecer solteira e resignada com a sua condição de mulher pobre que nasceu para ver os outros serem felizes.
Referências
Régio, José (1941). Davam grandes passeios aos domingos. Ilustrações de Lima de Freitas. Lisboa: Inquérito.
Reis, Carlos (2018). Dicionário de estudos narrativos. Coimbra: Almedina.