K. Maurício é uma personagem criada por Raul Brandão que surge esporadicamente na Revista d’Hoje, no Correio da Manhã e no Micróbio, de Celso Hermínio, entre “Dezembro de 1894 e Maio de 1895” (Viçoso, 1999: 157), sendo-lhe atribuída a autoria de um diário fragmentário, com o título “Diário de K. Maurício”. Em 1896, surge a obra História dum Palhaço (A Vida e o Diário de K. Maurício), sendo posteriormente reeditada, em 1926, com o título A Morte do Palhaço e o Mistério da Árvore. O texto e a personagem são sintomáticos da época em que são escritos, na medida em que nos deparamos com três níveis narrativos quase sobrepostos, por um lado, e, por outro, com uma sucessão de alteridades que na sua pluralidade não deixam de ser K. Maurício.
A introdução por Raul Brandão fornece-nos informações adicionais acerca da personagem, fazendo lembrar o texto introdutório que Pessoa viria a escrever para o Livro do Desassossego: “Foi aí, na corcova do monte, onde três oliveiras arrepiadas punham uma mancha de crime, que eu conheci K. Maurício (…). A sua Vida, a sua Alma, ele a estatela no livro que se segue, e que deixou escrito. É um romance incompleto e fácil é de ver que é quase uma autobiografia: por isso lho publico, juntando-lhe o que nos seus papéis encontrei com o título de Diário” (Brandão, 2005: 31-32). O editor da obra faz-nos um resumo biográfico do autor, onde sobressaem características como o niilismo, o ceticismo, a abulia e o sofrimento aliado a um certo cansaço latente: “É no diário que ele, com uma singular ferocidade, se conta. É fácil reconstituir a vida desse homem, duma sensibilidade exasperada, que sofreu sobretudo pela imaginação, incapaz de realizar – singular tortura, que é a de muitos moços, que agora entram na vida” (33).
K. Maurício surge como um homem destroçado e inativo, um ser da imaginação e não da realidade. Nessa irrealização ou incapacidade de materializar algum projeto reflete-se a crise finissecular de especulação positivista. A personagem vive entediada e obcecada com a ideia da morte e do sofrimento que é viver uma realidade que em nada corresponde ao que é vivido nos sonhos.
A dor de pensar é um sinal da crise da consciência moderna, que se multiplica e metamorfoseia, dispersando-se. A máscara surge, então, como uma escapatória à cruel realidade: “Fez-se então palhaço e foi trabalhar para o circo. Só saía à noite. De dia ficava no covil da casa de hóspedes de D. Felicidade a ruminar pedaços de sonhos, gastos e esquecidos; mas a noite na cidade encantava-o com os seus aspetos dolorosos e imprevistos” (95).
A personagem revela um desfasamento entre aquilo que sente e experiencia interiormente, sempre de forma alada e sonhadora, e a outra existência exterior, mesquinha, entediante e abúlica. K. Maurício revela ser um sujeito descrente na vida e nas pessoas, pois tudo à sua volta tende a ser ruinoso, espelhando uma imagem de decadência fulgurante: “Não tenho vontade de ser nada, nem de fazer nada e cheguei a esta conclusão sobre a vida: tudo é ilusão e mentira. As árvores que eu amo sobretudo na terra, as coisas e as criaturas, são ilusões: a gente é que as cria e faz belas ou tristes, sofredoras ou hirtas; a morte e a vida transformações que para nada importam; o homem, uma quimera com ânsia na alma…” (70). Em constante tensão entre o sonho e a realidade, o possível e o impossível, a personagem perdeu a crença nas verdades conhecidas. O seu posicionamento consiste, assim, em adotar uma máscara, fingindo interesses e uma vida, simulando a sua própria existência, vivendo e sentindo apenas com a imaginação.
Ao fazer-se palhaço, K. Maurício agudiza a sua dispersão e fragmentação: “Que faço eu aqui? Não acredito em nada a valer, não tenho fé, nem sou capaz de me sacrificar por uma ideia: vou no vagalhão empurrado, arrastado ao sabor de ventanias. Parece-me que já vi tudo e senti tudo. E no entanto tenho medo de morrer e ponho-me a pensar às vezes que só vale a pena viver para sonhar noutra vida melhor: para tecer quimera, ideias… Mas tudo isso é tão fugitivo” (92).
A partir do momento em que K. Maurício se apaixona dão-se algumas mudanças na sua vida, sendo uma delas o constante diálogo com a voz, que surge aqui como figura antagónica e destruidora do interior do palhaço. Num episódio em que tenta declarar o seu amor a Camélia, a personagem brandoniana é levada à angústia interior causada pela voz que o dilacera, destruindo qualquer esperança de relação amorosa ou felicidade efetiva: “Se ia a confessar-lhe o seu amor uma voz lhe pregava na alma: - Olha que ela vai rir-se de ti! Pois tu não vês como és desprezivo e cómico, Palhaço! Olha que ela vai fazer escárnio do teu amor, da tua paixão, das tuas noites febris” (118).
O suicídio da personagem e o do clown, seu duplo, não deixam de ser, contudo, diferentes, mas sintomáticos de uma causa comum - a impotência perante a vida: “Devagar, segurou (…) o trapézio cortado, tecendo com os braços a vida para Lídio, que logo desceu quase inerte. Viu-se então um trapo negro (…) vir de cima, lá do alto do circo, e (…) o Palhaço estoirou na arena, grotesco até na morte… A música, desvairada e hílare, rompeu uma marcha de triunfo, a Multidão, entendendo que tudo aquilo era uma farsa de génio, sacudiu-se na tempestade de uma gargalhada homérica – e a poeira do bailado, borboletas de fogo, de luz, verdes, escarlates, multicolores, sob os jorros dos refletores, fugiu num terror, sacudida por uma ventania de raiva…” (132-133).
Embrião do que será a criação heteronímica pessoana (Vieira, 2019), enunciadora de uma “modernidade emergente, mas também agenciador[a] de um drama pessoal” (Valentim, 2014: 235), K. Maurício é apresentado como uma espécie de desdobramento, vindo a figura do palhaço agudizar o sentimento de rutura e alteridade do sujeito, que deixou de ser uno e harmonioso.
Referências
Brandão, Raul (2005). História dum palhaço. (A vida e o diário de K. Maurício). A morte do palhaço e o mistério da árvore. Introdução e edição de Maria João Reynaud. Lisboa: Relógio d’Água.
Valentim, Jorge (2014). “História dum palhaço, de Raul Brandão: uma ópera da modernidade no fim do século XIX em Portugal”, in Otávio Rios (org.). Raul Brandão, um intelectual no entre-séculos: estudos para Luci Ruas. Rio de Janeiro: Letra Capital.
Viçoso, Vítor (1999). A máscara e o sonho: vozes, imagens e símbolos na ficção de Raul Brandão. Lisboa: Edições Cosmos.
Vieira, José (2019). A escrita do outro: mentiras de realidade e verdades de papel. Tese de Doutoramento. Coimbra: FLUC, disponível em https://eg.uc.pt/handle/10316/87577 (consultado a 29/07/2020).
[publicado a 11-04-2020]