Raul Germano Brandão é natural da Foz do Douro, frequentou o Colégio S. Carlos, no Porto, onde, à força de dureza e de severidade, colheu “uma imagem exata da vida” (Brandão, 2017: 384), entrando de seguida para a Academia Politécnica da invicta. Após frequentar o Curso Superior de Letras, sem o concluir, ingressou na Escola do Exército, em Lisboa, experiência que nitidamente o desgostou: “Ensinavam no meu tempo coisas inúteis que me deram mais trabalho a esquecer que a aprender” (384).
A carreira militar, assumida sem vocação, será, todavia, suavizadapor outras devoções, nomeadamente o jornalismo (Correio da Manhã), a literatura e a atividade de pequeno proprietário agrícola.
Já casado, e após ter-se fixado por breves períodos em Lisboa e em Guimarães, por motivos profissionais, voltou à aldeia natal e usufruiu ainda de temporadas retemperadoras numa casa de campo (Quinto do Alto), perto de Guimarães. Nessa ambiência rural, recordada como sendo a época mais feliz da sua vida, conviveu com a personagem-tipo (o pobre) que deixou uma marca indelével nos seus escritos: “É da gente ignorada que levo as maiores impressões da existência. Foram os pobres que me obrigaram a pensar – foi a série de figuras toscas que encontrei na estrada, duma realidade tão grande que nunca consegui afastá-las da minha alma” (Brandão, 2017: 426). Assim se justifica o aparecimento de títulos como Os Pobres (1906) e O Pobre de pedir (1931), conhecido postumamente.
Toma parte no grupo Os Insubmissos, que dá à estampa uma revista em 1889, e colabora no folheto Nefelibatas (1893). Priva também com os fundadores da Seara Nova, o que revela, da sua parte, um interessante convívio intergeracional, que congrega diferentes orientações estéticas.
Raul Brandão estreia-se literariamente com uma coletânea de contos naturalistas (Impressões e Paisagens, 1890), devedores da influência de Fialho de Almeida. Entre os autores portugueses, permanece também a admiração por Alexandre Herculano, Camilo Castelo Branco e Guerra Junqueiro.
Em 1896 escreve História de um Palhaço – Vida e Diário de K. Maurício, obra refundida anos mais tarde (1926) e apresentada sob o título A Morte do Palhaço e o Mistério da Árvore.
Em boa parte dos seus escritos encontraremos uma atitude de “eterno espanto” e a consciência de assistir de perto ao “espetáculo desabalado da vida” (11), atitude feita de dor e de sonho, uma dicotomia que percorre toda a gramática brandoniana, inclusive a estética teatral (destaquem-se O Gebo e a Sombra, 1923, e O Doido e a Morte).
Raul Brandão considera que “o homem é sempre um tablado onde vários fantasmas se despedaçam” (43), expressão que, para além da reminiscência shakespeariana, ajuda a compreender essa obra inquietante e sem solução de continuidade chamada Húmus (1917), tal como a sua subsequente adesão ao expressionismo. Aí, o narrador e o Gabiru exploram uma vida subterrânea, bem como as veredas esconsas desse “ser esfarrapado” (241) que tanto fascina o escritor e impulsiona a crítica a apodá-lo de dostoievskiano: “A certa altura da vida tive a impressão de que me despenhara num mundo de espectros. A face humana meteu-me medo pelo que nela descobria de repulsivo e de grotesco” (244). Alguns autores consideram o ascendente russo nefasto (cf. Nunes, 2016: 138), porque se tornou veículo de um impasse, numa obra promissora e simultaneamente desconcertante e irregular.
Autor de transição ou decano da estética finissecular, Raul Brandão assimilou fissuras e tensões ligadas ao seu tempo histórico e ao pessimismo ontológico e literário que então se vivia, conjugando-as com as suas leituras de cabeceira e com os problemas metafísicos que o perseguiam.
Porém, a par de uma prosa nebulosa e crepuscular, cheia de inquietação, há na obra de Brandão uma faceta solar que não podemos escamotear. Referimo-nos a livros como Os Pescadores (1922) e As Ilhas Desconhecidas (1924), que assinalam uma visão otimista, luminosa e colorida da existência, em contraste com as imagens espectrais e sombrias de Húmus, a sua obra-prima.
Como grande memorialista e voz autorizada da primeira República e das suas vicissitudes, Raul Brandão deixou-nos um grosso volume de memórias, assim como criações de teor histórico: El-rei Junot (1914), A conspiração de 1817- Gomes Freire (1914).
Não sendo muito reconhecido em vida, é de salientar, todavia, o elogio que José Régio faz à sua obra no texto “Literatura livresca e literatura viva” (1928), um dos textos doutrinários fundacionais da Presença.
Em 2012, Manoel de Oliveira realizou um filme a partir da peça O Gebo e a Sombra que foi bem acolhido na Bienal de Veneza.
Referências
Brandão, Raul (2017). Memórias. Três volumes reunidos. Lisboa: Quetzal.
Nunes, Natália (2016). Entrevista In William Rougle, A literatura russa vista por autores portugueses. Lisboa: MIL.
Personagem no Dicionário:
K. Maurício (História dum Palhaço (A Vida e o Diário de K. Maurício))