Calisto Elói de Silos e Benevides de Barbuda é o protagonista d’A queda dum anjo (1866), de Camilo Castelo Branco, sendo ele próprio o motivo do título desse romance satírico, como adiante se verá. Apresentado pelo próprio narrador como "o herói do conto", Calisto Elói tem como pai um cavaleiro fidalgo e, por parte materna, vem de uma linhagem não menos aristocrata e elitizada, muito bem composta por “doutores em cânone, cônegos, desembargadores do eclesiástico, catedráticos, chantres, arcediagos e bispos, parentela ilustríssima” (Castelo Branco, 2005: 17). Todo o primeiro capítulo do romance dedica-se a apresentar a personagem em sua rica descendência, com especial destaque para o casamento – por interesse – com a segunda prima, D. Teodora Barbuda de Figueiroa, morgada de Travanca, apresentada pelo narrador como uma mulher rude e ignorante.
Situando a história entre 1864 e 1866, a narrativa camiliana toma a vida de Calisto Elói como ponto inicial de uma diegese em espiral, porquanto parte da personagem em causa para, depois, ir-se compondo de círculos acionais que paulatinamente o vão desenhando como o centro da atenção do leitor. Apesar do recorte temporal, a vida do protagonista é retomada ainda nos anos 40 do século XIX, a fim de que seja devidamente destacada a formação erudita da personagem: herdara muitos livros dos parentes, fora para o seminário e, assim, investiu-se de uma erudição que acabou por fazer dele um homem mais conservador que erudito, um verdadeiro arquétipo da figura arcaica que antecedeu a chegada da modernidade em Portugal.
Tendo em conta esse percurso intelectual, todo o trajeto de vida de Calisto mantém alguma relação com a política, cuja prática tivera por base justamente o seu discurso arcaico: desde o modo de falar até as vestimentas que utilizava, tudo em Calisto Elói remetia ao antiquado, ao obsoleto e ao perempto. Se, para o narrador, essa caracterização representa o atraso que marcava Portugal no período da Regeneração, Calisto, que não se apercebeu da onda de modernidade, via no próprio estilo uma forma de exercício simbólico do poder dentro do microcosmos em que se situava: o município de Miranda, mais especificamente em Caçarelhos, onde foi presidente por apenas um dia, devido à sua total recusa de uma legislação que, para ele, degradava a moral e os bons costumes de que o protagonista se fizera arauto; Calisto defendia a reimplantação de um lastro legislativo implementado há praticamente cinco séculos, o que foi motivo de galhofa para os vereadores que ali estavam. Negando-se ao sistema, Calisto se demite e deixa a Câmara. Quanto aos risos daqueles que assistiam a esse discurso absurdo, vê-se aí que a figuração dada ao protagonista busca confrontar o passado e o presente, fazendo com que este – nutrido de certo senso de futuro – se ria daquele.
Em Calisto Elói consubstanciam-se os três principais vetores do conservadorismo português à época: o modo interiorano de vestir-se, o uso – e obviamente a defesa – da língua erudita e, por fim, a ideologia conservadora – anacronismos que o narrador desenha tanto por meio da ‘melhor' roupa do protagonista, utilizada em seu casamento 30 anos antes, quanto através de seu falar denso, monológico e, portanto, de compreensão arrastada. O movimento descritivo da personagem mostra que o narrador o eleva a um tal estatuto social que, adiante, proporcionar-lhe-á uma grande queda, já anunciada no título da obra: eleito deputado de Miranda, muda-se para Lisboa a fim de defender as demandas de seu município. Por algum tempo sustenta a pomposa retórica e o conservadorismo no vestir-se, o que novamente faz dele motivo de escárnio e zombaria pelos membros da Câmara. Contudo, à medida que saboreava os ares da capital portuguesa, deparava-se com a modernidade que aos poucos se espalharia pelas cidades do país.
A figuração desse protagonista, em sequência à espiralidade diegética que marca a obra, possibilita ao leitor acompanhar uma transformação dupla e metonímica: a da personagem e a de Portugal, por Calisto representado: abandonando os pensares e dizeres de uma ideologia visivelmente pretérita para a capital portuguesa e após uma desilusão amorosa com Adelaide, que o renegara por ser casado, Calisto Elói deixa dissolver-se a própria resistência antimoderna para, progressivamente, ser tomado por uma metamorfose que, a princípio, começa em suas vestimentas, as quais tanto cobrem – e ressignificam – o corpo quanto descerram ideologias, como aponta o próprio narrador: “Aquela alma vai-se transformando à proporção da roupa” (75).
A língua e a literatura passam também pelo compósito mutacional de Calisto Elói, que começa a ler livros mais modernos e a aderir a um novo modelo de linguagem, o que demonstra a maneira como, também na personagem, a palavra enunciada e a literária tornam ainda mais evidente a quebra de paradigma por que passara Portugal, cuja nação, acompanhando os padrões de expressão nacionalista de grande parte dos países europeus, coloca-se culturalmente por meio da simbiótica relação entre língua e literatura. Se a língua é fator de constituição identitária, a sua transformação não menos o será, porque, muito ao contrário, as novas formas de utilização da língua portuguesa – nomeadamente em Calisto Elói, que tanto resistira a essa novidade – situará o leitor na multimodalidade de que foi feita a modernização portuguesa: vestuário, linguagem, literatura, ideologia, relações amorosas, tudo era objeto de mudança.
Por meio do protagonista, o romance dá a ver uma espécie de geografia do contraste: Caçarelhos e Lisboa apresentam realidades completamente antagônicas do ponto de vista do desenvolvimento econômico, cultural e ideológico, e Calisto – enquanto entidade cultural – transita pelos dois espaços, donde a consideração de que a personagem é, ao mesmo tempo e como referido, representação e metonímia de Portugal, cujo povo paulatinamente ia absorvendo as mudanças e adaptações oriundas do liberalismo e do materialismo que com ele se fortaleceu. De miguelista convicto, a personagem passa a adotar o habitus e o logos da modernidade, sendo ele próprio o meio e o fim pelos quais o tempo transfigura e redimensiona culturas.
O signo da queda, ao compor a biografia do herói, não será menos antagônico que a espacialidade da narrativa: tendo em vista o conservadorismo e o moralismo defendidos pelo anjo transmontano, o desfecho apresenta uma espécie de redenção sem sofrimento, já que, ao final do romance e a despeito do que o próprio narrador ouvia dizer, o protagonista fica a viver com a brasileira D. Ifigênia Ponce de Leão, com quem tem dois filhos, é condecorado com o título de Barão de Agra de Freimas e, para não ser pouco, encontra-se com boa saúde e largo capital financeiro. Destarte, o narrador, atando o desfecho ao título, assim ilustra o cenário final: "Caiu um anjo, e ficou simplesmente o homem, homem como quase todos os outros, e com mais algumas vantagens que o comum dos homens. Dinheiro a rodo! Uma prima que o preza muito! Dois meninos que se lhe cavalgam do costado! Saúde de ferro! E barão!" (152). Note-se que, aos olhos do leitor atento, esse comentário deixa escapar uma importante estratégia de figuração, qual seja uma descrição social e política que se faz, novamente, por espiral, do centro – Calisto – para fora: situado entre os benefícios liberalistas e as benesses políticas, Calisto Elói, o novo Adão, não deixa de ser o anjo caído, mas, ao fim e ao cabo, passa a ser compreendido como um anjo cuja queda o naturaliza e humaniza; passa a ser o contrarretrato do falacioso e repressor puritanismo judaico-cristão o qual, de pouco em pouco, ia-se dissolvendo em finais do século XIX, justamente em função das modernizações de que o protagonista é, ao mesmo tempo, objeto, resultado e exemplo; passa, por fim, a ser um anjo que, qual Lúcifer caindo do sagrado rumo ao profano, abre uma senda para o humano, uma espécie de terceiro lugar existencial, bem ao gosto das estéticas do século XX, ainda mais agudas em sua inclinação para a modernidade.
De tão representativa que foi e é para a cultura portuguesa, a saga de Calisto Elói encontrou espaço em obras homônimas e de distintas semióticas: uma peça teatral escrita pela professora e pesquisadora Luísa Alvim (2010), a canção da banda portuguesa Delfins (1993), cuja letra dá especial relevo à dimensão negativa da existência humana, aí observada como naturalmente corrompida, e um conto de Afonso Cruz intitulado A Queda de um Anjo (2012). Além disso, não menos importante é a tradução da obra camiliana para o mirandês produzida pelo escritor e tradutor Alfredo Cameirão em 2016. A obra foi lançada na comemoração dos 150 anos de publicação desse romance, cujo cenário se divide entre Caçarelhos, freguesia de Miranda do Douro, e Lisboa.
Referência
CASTELO BRANCO, Camilo (2005). A queda dum anjo. São Paulo: Editora Ática.
[publicado a 10-01-2020]