Protagonista do único romance de A. Silva Gaio, Mário incarna traços do herói romântico, como o define Reis (1997: 232). Colocada à prova praticamente desde o início da obra, a personagem submete-se e supera inúmeras contrariedades que estão na base do seu relevo actancial e do seu potencial figurativo. Filho exemplar e militar de carreira, viaja com o pai até à Beira, onde é ferido quase mortalmente, na sequência de uma perseguição exercida por Jorge Pinto às famílias com ideais liberais. Na casa em que encontra acolhimento e proteção, enamora-se de Teresa, a sobrinha do Pe. Maurício, e dá a conhecer, ao longo dos meses de convalescença, as qualidades morais que cativam todos aqueles que o rodeiam.
Roído de ciúme, o seu sicário consegue afastá-lo, condenando-o a três anos de desterro em África, agravados pela acusação de roubo. A dura experiência a que Mário é submetido (trabalhos forçados em condições precárias, acompanhados de maus tratos físicos) revelam o seu estoicismo e abnegação, bem como a crescente capacidade de lidar com a dureza e a injustiça humanas, dimensões que o engrandecem à medida que a intriga avança. O protagonista vai assim medindo forças com um destino que desconhece e cuja trama é maquiavelicamente urdida por Jorge Pinto. Companheiro de um ‘bom selvagem’ que humaniza e a quem empresta um pouco da sua nobreza de caráter, Mário engendra um plano de fuga que os leva a ambos até ao Brasil. Aí, a heroicidade do protagonista do romance parece soçobrar quando descobre a verdade a respeito da sua amada e o motivo do agravamento da sua pena em África: Teresa, agora casada, teria assinado uma declaração onde culpava Mário do roubo do seu dote.
O choque deixa o herói às portas da morte, mas a Parca não o leva antes de ele recuperar a sua honra e de se repor a ordem perdida. Na Alemanha consegue reaver a joia roubada pelo pai a Teresa, na noite em que entraram no presbitério. Em seguida, ruma a Portugal e entra triunfantemente no Porto, onde a campanha entre liberais e absolutistas está ao rubro: “— Em guarda! — comandou Mário, vendo na bateria do Cabedelo o movimento dos morrões. Seguiu-se à ordem um tiro de metralha, cujos projéteis silvaram por entre os homens, se cravaram no costado do barco, e fizeram espirrar a água em volta” (Gaio, 1981: 383). Alistado em Infantaria 10 e assumindo uma identidade falsa (Luís de Sousa), minado pelo desalento, Mário entrega-se diariamente à causa, esperando que uma bala lhe ponha termo à vida. Essa quase cobardia é, no entanto, contrariada pelas investidas bem sucedidas em que toma parte e que culminam na condecoração recebida das mãos de D. Pedro (459). Mas o reconhecimento público não lhe chega; Mário carece ainda da paz doméstica e da redenção final. O regresso ao presbitério de S. Romão, a restituição da prebenda furtada e o esclarecimento das aparentes traições, edulcoradas por um cenário melodramático, devolvem ao protagonista os bons sentimentos, entretanto sofreados pelo profundo e demorado sofrimento.
Mário, nome de um dos filhos de A. Silva Gaio, representa o herói liberal, que se bate pelos grandes princípios humanos: “Tu, o instruído representante da liberdade, foste condenado pelos obscuros sacerdotes do despotismo, ou pelos partidários que repelem o alvor da grande verdade” (173). Nesse sentido, é com um fito histórico-didático que o autor coloca diante dos leitores uma personagem que ajude a “lembrar o que a liberdade custou, a muitos que de tal andam esquecidos, e por isto não toleram a liberdade alheia” (xxiv).
Referências
GAIO, António Silva (1981), Mário. Episódios das lutas civis portuguesas de 1820-1834. Prefácio de Tomás Ribeiro. Porto: Lello & Irmão Editores.
REIS, Carlos (1997), “Herói”, in Dicionário do Romantismo Literário Português. Lisboa: Caminho. 230-233.