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Alberto Soares

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Autor: Fotografia do filme Aparição (direção de Fernando Vendrell).

Alberto Soares (Vergílio Ferreira, Aparição)

Alberto Soares é protagonista de um dos romances mais consagrados de Vergílio Ferreira, Aparição, publicado pela primeira vez em 1959. Alberto apresenta-se desdobrado em dois tempos principais: o tempo da recordação, da narração e da escrita, e o tempo da vivência da história. No entanto, em sintonia com a sua própria crença de que “o tempo não existe senão no instante que sou” (Ferreira, 1971: 190), o narrador relembra o passado, bem como antecipa certos eventos da história, conforme lhe aparecem no presente. Assim também deixa o instante da narração evidenciar-se em meio aos acontecimentos antigos (aliás, tal instante ganha espaços exclusivos no texto e destaques em itálico, numa espécie de exórdio e de peroração à narrativa). Só com a esposa, na velha casa da aldeia da Beira, já deserta dos pais, é na história vivida em Évora anos antes, que o narrador-protagonista tenta “descobrir a face última das coisas e ler aí” a sua “verdade perfeita” (9).

Como quem (res)sente nas vísceras a “branca cidade ermida” de Évora e o que ali se passou, desde a sua chegada à estação e a instalação na pensão do Senhor Machado até sua partida, o protagonista nos dá a conhecer cerca de um ano de sua vida. Escritor e professor de Letras, Alberto Soares vai a Évora para lecionar. Seu anfitrião na cidade é um velho conhecido do pai, Dr. Moura, que abre sua casa para receber o filho do amigo. A narração persegue, então, a linha dos acontecimentos resultantes das suas relações com a família Moura, com suas filhas Cristina, Ana e Sofia, com Alfredo Cerqueira, marido de Ana, e com mais dois amigos da casa, Chico e Carolino. Entre diálogos, deambulações e contemplações da paisagem, ganham evidência alguns episódios de força mais dramática, como o suicídio de Bailote, um paciente de Moura, e a morte acidental de Cristina, os (des)encontros amorosos com Sofia, a briga com Carolino e o assassinato, por este, de Sofia. Alberto também atenta em duas visitas à casa da sua família ainda no mesmo ano, em certos antecedentes da história, como a morte do seu cão Mondego na infância e o falecimento do pai, dias antes de mudar-se para Évora, também em alguns eventos subsequentes, como o julgamento de Carolino pelo assassinato de Sofia, a mudança para Faro e o retorno, enfim, à casa paterna.

É nas vozes que vêm do passado que ele deslumbra, em alarme, a presença iluminada, a aparição de si. Assim, a imanência de cada outra personagem com que Alberto convive na história, reflete, por semelhança ou diferença, faces do seu mesmo ser; ou melhor, Alberto configura-se no encontro-confronto com os outros, conforme explicita a certa altura: “Medito-me a mim próprio na pessoa deles”, no “ser estranho de cada um” (76). Portanto, é mais como um debate de ideias sobre a existência, como interrogações e sentenças voltadas sempre para desenvolver a busca essencial de Alberto, que as cenas de diálogo integram a narrativa; e elas são intercaladas com os instantes de solidão e ensimesmamento do narrador-protagonista, a pensar no vivido.

As particularidades de Alberto aparecem, pois, nos limites das suas relações com as outras personagens, entre “os que ignoram a descoberta do eu” e vivem “no dia a dia animal” (60), e “os que têm a dádiva da consciência de si” (61). Na família, por exemplo, ele é o irmão do meio, tratado por “monge” pelo caçula Evaristo, decerto pelas diferenças que os caracterizam. Este irmão, ligado ao comércio, é lembrado como ganancioso, extravagante, “feito de sucessivas aparências”, o preferido da mãe. Já o camponês Tomás, o irmão mais velho e predileto do pai, aparece-lhe como reservado, sensato, um “sólido de serenidade” (107), que deixou-se ensinar pela organicidade da natureza. Ao olhar para os irmãos, Alberto permite ver o que ele recrimina – a inconsciência, a volubilidade e o desequilíbrio de Evaristo; e o que ele admira – a “plenitude fértil onde tudo estava certo: a harmonia da vida e da morte” (15) de Tomás.

Entre “encontros de presenças, de cumplicidade, de interrogação e suspeita” (76), Alberto progride no conhecimento do outro e de si. Diante das intervenções grosseiras de Alfredo, o protagonista pergunta-se: “Que era aquele tipo? Apenas um idiota? (74). Depois de conviver mais tempo com ele, conclui: “é como se reconhecesse em ti um escárnio a todos os nossos problemas, a toda a nossa perturbação” (176). E para além das semelhanças que Alfredo e Tomás poderiam ter em função do trabalho com a terra, Alberto distingue-os, ao mesmo tempo em que se autodefine: “Tomás está além como tu [Alfredo] estás aquém de toda a minha angústia" (176).

Portanto, cada outro, com sua maneira de responder aos problemas fundamentais da existência, é para Alberto como um segredo que ele, fascinado, tenta desvendar. O doutor Moura acredita na instituição católica e no dogma para lhe tomar conta da vida e da morte (28), assim dedica todo o tempo que lhe sobra ao trabalho e não a refletir sobre a condição humana. O engenheiro Chico, “quadrado homem de ferro e de cimento” (50), “sempre puramente ateu” (80), orienta sua vida pelo racionalismo materialista e, ainda que por outro motivo, também condena as problematizações existencialistas de Alberto: a “sua mixórdia irracionalista“, “os seus sofismas”, a “sua perversão” (164). Entre os dois, Alberto não mais confia a verdade da sua condição ao poder transcendente de um Deus, mas também não acredita, como Chico, que o problema do homem se resuma ao “direito a comer”: “o meu humanismo não quer apenas um bocado de pão, quer uma consciência e uma plenitude” (52). Carolino, por sua vez, aluno de Alberto, leva até à loucura a descoberta de sua pessoa e se põe a medir forças com Deus: “Eu sou um homem (...) tenho em mim um poder imenso. Imenso como Deus” (148); e é na destruição de Sofia que ele escolhe provar esse poder.

A relação de Alberto com as três filhas de Moura é das mais significativas para a sua própria figuração. Ana, “em crise, inquietação, fúria silogística” (27), é sua interlocutora ideal, nos debates sobre o homem, Deus e a morte. Sofia, em sua vitalidade rebelde e “beleza demoníaca”, inquieta-o e seduz, despertando seus desejos mais clandestinos e incontroláveis. A caçula Cristina, por seu talento para a música, eleva-o ao êxtase contemplativo, à fruição da Beleza e da Harmonia na arte. Poderíamos dizer, então, que com cada uma, respectivamente, ele estabelece um tipo especial de comunicação: a da mente intelectual, a do corpo, a do espírito. Aprendizagens talvez necessárias para o estabelecimento de uma comunhão mais plena (“a flor breve e miraculosa da profunda comunhão”, 190), tal como apresenta a sua relação com a esposa, nas linhas finais da introdução e da conclusão da narrativa.

Partindo do mundo das relações, na sua incessante indagação existencial, Alberto tenta chegar ao domínio do intemporal, do transcendente, que é, afinal, o mistério que o atormenta e deslumbra; encontrar o seu lugar numa ordem natural e cósmica (como as recorrentes contemplações da natureza e sua mudança para a casa do Alto exemplificam); “adequar a vida (que é um pleno de ser, um absoluto, uma positividade necessária) com a morte (que é uma nulidade integral, uma pura ausência, um nada-nada)” (78), tentativa esta que ganha expressividade no diálogo angustiado com o corpo morto do pai e nas reflexões diante das várias mortes presenciadas por ele na história. Entretanto, para além das questões existencialistas que incorpora – tão caras a Vergílio Ferreira – sentimos ressaltar-se, sob sua pena, a luta entre o “sentir original” (9) e a materialidade das palavras que servem para traduzi-lo, entre o milagre instantâneo e a forma mais eficiente de dizê-lo e pensá-lo. Alberto faz da sua própria contingência matéria de escrita: “Escrevo para ser (...), ver no seu próprio estar sendo este irredutível e necessário e absurdo clarão que sou eu iluminando e iluminando-me” (136). Ao mesmo tempo, sua habilidade com o “verso clandestino” e a “invenção do invisível” (19) cria, para os eventos comuns, uma aura epífana e sublime, capaz de deixar também o leitor em estado de graça.

Em 2018, o romance Aparição foi adaptado ao cinema, com realização de Fernando Vendrell


Referência

FERREIRA, Vergílio ([1959]1971). Aparição. Lisboa: Editorial Verbo.

Raquel Trentin