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João Coradinho

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Autor: Fábio Mordomo

João Coradinho (Almeida Garrett, Memórias de João Coradinho)

Personagem-narrador de narrativa picaresca, constitui um caso isolado na galeria de figuras garrettianas e um dos mais interessantes exemplares deste género em Portugal. João Coradinho é o protagonista da novela epónima cujo texto, iniciado em 1825, ficaria por concluir. Segundo Gomes de Amorim, que deu a conhecer parte do manuscrito, o nome e a figura inspiram-se num mendigo negro que em tempos vivera na cidade do Porto (Amorim, 1881: I, 453), mas esse dado não parece interferir no seu recorte ficcional.

Como figura romanesca, o pícaro é por definição um anti-herói, normalmente um jovem de baixa condição, desqualificado sob os pontos vista social e moral. A tradição castelhana caracterizou-o como um "mozo de muchos amos", marginalizado mas astuto, que deambula ao sabor da fortuna e vai adquirindo um conhecimento muito cínico das formas de sobreviver em sociedade. O pícaro dá lugar a uma narrativa de aprendizagem, portanto, autodiegética e com um forte cunho satírico, incidindo em temas e tipos sociais de atualidade. A personagem garrettiana corresponde às regras do género: trata-se de um rapaz negro, pobre e enjeitado, cuja vida atribulada é contada por ele próprio na sua pitoresca linguagem. Também não lhe faltam astúcia e cinismo, traços de caráter típicos que aqui são extremados a um nível quase caricatural.

No capítulo introdutório, João Coradinho ironiza sobre a presunção de se apresentar como “autor” alguém que sempre viveu debaixo da “capa da estupidez e da atoleimada chocarrice” (Garrett, 2015: 73-4). E logo passa ao relato, descrevendo as circunstâncias cómicas do seu nascimento: é fruto dos amores ilícitos de uma viscondessa debochada e de um caiador negro, cobiçado por ela quando o surpreende, nu, nos braços da lavadeira. Nascido o menino, mulato e feio, cresceu enjeitado numa aldeia, “objeto de mofa e desprezo de todos”. Esta primeira experiência do mundo, ingrata e segregadora, determinou a filosofia de vida de João Coradinho. Desde cedo criou ódio à espécie humana, cuja essência considera maligna e tirânica, e concebeu um regime de comportamento baseado na hipocrisia: “Meu natural até’li bom, franco, rasgado, e sincero, converteu-se em refalsado, traidor e dissimulado caráter. Afetei de simples e pouco e pouco cheguei a parecer quási mentecapto. (...) Estou pois que os homens são o que os fazem: mau me fizeram e mau saí” (Garrett, 2015: 80-1).

A persona criada na infância promete resultar em simpatia, e João vai apurando as suas estratégias de duplicidade no convívio juvenil: faz-se mais grotesco, deixa-se vestir de palhaço, o rosto pintado de vermelho, e assim consegue aproximar-se das raparigas, beijá-las e beliscá-las: “tudo me consentiam porque eu por tolo passava”. A iniciação sexual é também obtida à traição: tomado de amores por uma Joaninha esquiva, desengana-se com grande desgosto, mas logo se insinua como confidente da rapariga, prometendo interceder pelo seu desejado namoro. Congemina então o seu perverso plano de sedução, em que ela, – “embriagada de futuros prazeres que lhe eu pintava, se deixava abraçar e beijar”... até ao momento em que consuma a violação: “torpe e vilmente gozei da suprema felicidade, gozámos ambos, ela de sua ilusão, eu do meu crime” (Garrett, 2015: 88-9).

Os quatro capítulos seguintes relatam as aventuras dos anos de itinerância, em que João Coradinho vai conhecendo diversos ambientes e “protetores”. Os remorsos pelo crime cometido cedo se desvanecem, porque constata que o erro é a regra em todas as classes e costuma compensar quem o pratica. A primeira demonstração desta realidade ocorre em cenário campestre: refugiado num palheiro, Coradinho presencia uma conversa entre um par de amantes serôdios que revela a vida tortuosa do casal, envolvendo roubos e assassinatos com a cumplicidade de um padre. Durante uma cena burlesca em que trocam acusações e impropérios, o homem descobre o foragido e convida-o a juntar-se à “irmandade”: João vai então acompanhá-lo como “moço de cego” a Santarém.

No episódio seguinte o contexto melhora de nível social, mas não moral: Coradinho encontra-se num convento, sob os auspícios de um tio frade, e apercebe-se das desigualdades que ali imperam. Industriado sobre a melhor forma de ascender na vida conventual, decide-se a estudar. Aprende a ler e, em poucos meses, tinha já “tal “cabedal de leitura... mal amanhada e sim mal digerida” que espantava os mestres; seguem-se a arte da dialética e a teologia, pelas quais haveria de sofrer dissabores – “tomei fogo nas disputas, exaltou-se-me a bílis e com estocadas de raciocínios fui pondo contra mim toda aquela gente. (...) Levado da força do argumento, não houve proposição heterodoxa, não houve tese que eu não quisesse defender” (Garrett, 2015: 106). Acaba por fugir de um convento em fúria, acusado de heresia.

A sátira ao saber retórico, vazio, continua no último capítulo, com fortes críticas ao ensino instituído em Portugal “(...) para ser sábio português basta andar alguns anos em Coimbra, tomar rapé, falar mal e galicada a sua língua, ler quanto basta para adquirir alguns termos de um idioma hermafrodito que o vulgo toma por linguagem científica, e nada mais” (Garrett, 2015: 109). Coradinho está agora no Porto, onde espera ter guarida junto de um rapaz prendado, tangedor de guitarra. Desilude-o o amigo quanto à esperança de encontrar emprego com base em dotes literários: “bem mostra vossa mercê que nunca viveu no século. Escrever, compor, ganhar pão c’o a letra redonda! Não há disso nesta nossa terra. Tome o meu conselho, dê de mão a esses projetos” (Garrett, 2015: 112). Não sabemos o teor dos conselhos alternativos que Coradinho promete seguir; dariam seguramente lugar a novas experiências de desmoralização.

A narração em 1ª pessoa permite ao suposto autor das Memórias exercer autocrítica, o que faz de forma desassombrada, mas ao mesmo tempo complacente. No entanto a exploração psicológica é escassa, porque o perfil está traçado desde início. O foco da sua atenção concentra-se na sátira social, com recurso a liberdades só admissíveis num texto humorístico e na voz de um marginal; por isso mesmo, o discurso ganha relevância pelo cómico de linguagem, hábil em parodiar registos aliteratados, familiares e populares. Na verdade, a sátira reveste-se de uma tonalidade carnavalesca: quer no convívio com o povo, quer entre letrados e clérigos, é sempre um “mundo às avessas” aquele que o anti-herói nos apresenta, no sentido em que desmonta as falsas aparências e subverte os valores morais.

 

Referências

AMORIM, Francisco Gomes de (1881-84). Garrett. Memórias biográficas. Lisboa: Imprensa Nacional.

GARRETT, Almeida (2015). Fragmentos romanescos. Edição de Ofélia Paiva Monteiro e Maria Helena Santana. Lisboa: INCM.

Maria Helena Santana