Narrador e coprotagonista do romance saído em 1870, Gustavo conta ao leitor a difícil experiência amorosa vivida entre os dezanove e os vinte anos, na fase em que todas as quimeras e ilusões pareciam entrosar-se com a realidade. Num tom de progressivo desencanto e pessimismo ontológico (a raiar uma certa misoginia) a personagem relata, na primeira pessoa e com alguma distância crítica, o grande desengano da sua juventude: a paixão por Eva, uma mulher insidiosa e pérfida, que vem a revelar-se casada e presa a uma esfera social elevada de que nunca abdica.
O jovem escultor, que pouco mais tem para oferecer que o seu amor incondicional, tecido por um caráter “romântico” e por um espírito entregue ao platonismo (Nazaré, 1987: 79), faz a análise possível de uma aprendizagem que o levará a apontar o dedo acusatório àquela que o perdeu: “Que fizeste da minha mocidade, mulher?” (240). Trata-se de uma autoanálise embotada, por vezes, nem sempre pautada pela lucidez, já que a confissão e o monólogo interior se expressam por via de um discurso torturado, envolto numa retórica sentimental de mágoa ainda irreprimida e um pouco fastidiosa. O uso excessivo do registo epistolar compromete a visão desapaixonada dos acontecimentos que só virá a ser reposta quando o amante de Eva tiver acesso ao diário da amada, denunciador da “hidra chamada mentira” (239) e da “ingratidão de víbora que envenena o próprio leite que a alimentou” (240).
Leitor culto, como nos mostra ao longo do romance, Gustavo torna-se, no fundo, vítima ingénua e sonhadora das suas leituras: “Seduziu-me a forma aérea e vaporosa em que o poeta [Heinrich Heine] expressava os magníficos devaneios da sua alma sensível e apaixonada” e das suas personagens literárias prediletas. A identificação de Eva com Marion Delorme de Vítor Hugo, “un ange de lumière, / Une être chaste et doux...” (58), dita praticamente o equívoco da relação em que, em vez de uma mulher redimida, o jovem reconhece estar perante uma dissimulada calculista.
Descrevendo, no seu psicologismo minucioso, toda a espécie de sentimentos que o assaltam até alcançar a verdade, o escultor confessará a mudança radical nele operada: “E agora se morresses, Eva, que suprema indiferença com que eu havia de sentir as pás de terra do coveiro caírem sobre o teu corpo, miserável corpo a que eu nos meus transportes me abraçava como se lá dentro houvesse alguma coisa para me sentir e amar!” (238).
Incapaz de redimir a mulher adúltera por quem se apaixonou, o narrador tem tendência para o moralismo e para censurar a conduta das mulheres. Nesse sentido, no seu conservadorismo latente, é um crítico feroz da condição feminina degradada e da prostituição, defendendo, acima de tudo, a preservação da “estátua da castidade e do amor” no “seu pedestal” (80). Aos homens que têm amantes deixa um conselho: “Afastem-se delas enquanto elas os amarem, antes de chegar a saciedade, o tédio, a indiferença” (243).
Não se julgue, contudo, que o narrador evolui para um verdadeiro estádio sapiencial; é o socratismo e a desilusão que o dominam no final: “Que sei eu após tantas noites consumidas a gemer e a meditar sobre as cinzas da minha felicidade? (...) NADA!” (246).
Referência
NAZARÉ, Santos (1987). Eva. Prefácio, bibliografia e notas de A. Manuel Machado. Lisboa: INCM.
[publicado a 06-07-2018]