Personagem do romance O Crime do Padre Amaro, de Eça de Queirós, publicado em 1880 (3ª versão; 1ª versão: 1875 e 2ª versão: 1876), também chamada pelo narrador e por outras personagens, pelo diminutivo Ameliazinha, é uma “rapariga de vinte e três anos, bonita, forte, muito desejada” (Queirós, 2000: 103). É filha da São Joaneira, beata que é amante do Cônego Dias e responsável por hospedar em sua casa o jovem pároco, Amaro, recém chegado a Leiria. O narrador descreve-a como encantadora: “Amaro olhou para ela, então, pela primeira vez. Tinha um vestido azul muito justo ao seio bonito; o pescoço branco e cheio saía de um colarinho voltado; entre os beiços vermelhos e frescos o esmalte dos dentes brilhava; e pareceu ao pároco que um buçozinho lhe punha aos cantos da boca uma sombra subtil e doce” (Queirós, 2000: 201).
Seu romance proibido com Amaro acontece em meio às sutilezas da conquista conduzidas habilmente por ele. Sua existência vai se modificando a partir do momento em que se envolve por completo na sedução do padre até cair em melancolia. Embora seus primeiros ensejos amorosos tenham sido para Agostinho de Brito, é com João Eduardo, escrevente do cartório, que está comprometida, quando Amaro chega a Leiria. Mas deixa o rapaz. Este, mesmo se sabendo preterido em relação ao pároco, lança tentativa infrutífera de salvar o relacionamento. Em diversas passagens, vê-se que a moça aprecia ser cortejada, como no exemplo a seguir: “Logo desde os primeiros dias Amélia reparou que os olhos do sr. Agostinho de Brito se fitavam constantemente nela, «pra namoro». Amélia corava muito, sentia o seio alargar-se-lhe dentro do vestido; e admirava-o, achava-o muito «dengueiro»” (Queirós, 2000: 243).
Recorrendo à denominação de E. M. Forster, Amélia é uma “personagem redonda”. Apresentada como uma moça alegre e sociável, inicialmente, torna-se melancólica, temerosa e isolada ao final. Criada apenas pela mãe, que liderava o beatério feminino em Leiria, a jovem não interage com outros ambientes que não seja o religioso, o que a faz ter uma visão dogmático-clerical do mundo. É, portanto, uma personagem que apresenta densidade psicológica. Embora exista a tendência de classificá-la como uma personagem manipulada, se olhada mais amiúde percebe-se que oscila entre este perfil - resultado do meio marcadamente clerical em que vive - e o da moçoila de arroubos eróticos (expressos em sonhos), levados às últimas consequências: a gravidez vivida de modo deprimente, isolada na Ricoça, e a sua transformação em figura apática e doentia, desiludida pelo amor de Amaro.
Considerando que O Crime do Padre Amaro é um romance alinhado com a estética realista-naturalista, Eça de Queirós dota, muito visivelmente, as suas personagens das características desta estética. Uma dessas características do naturalismo leva a apresentar aspectos patológicos das personagens, desnudando todos os seus instintos. A paixão e o erotismo que apareciam sublimados nas obras românticas encontram-se nas personagens realistas com “brutalidadee furor" (Queirós, 2000: 913), como na cena em que Amaro e Amélia se beijam: “Saltou, foi cair-lhe sobre o peito com um gritinho. Amaro resvalou, firmou-se - e, sentindo entre os braços o corpo dela, apertou-a brutalmente e beijou-a com furor no pescoço. / Amélia desprendeu-se, ficou diante dele, sufocada, com a face em brasa, compondo na cabeça e em roda do pescoço, com as mãos trêmulas, as pregas da manta de lã” (Queirós, 2000: 331).
Era na Igreja onde Amélia sentia acentuado o seu desejo, visto que, pela condição de fiel, sua devoção tornava-a submissa ao status quo que o padre adquiria através dos ritos cerimoniais da missa ”Era então que Amélia o amava mais, pensando que aquelas mãos abençoadoras lhas apertava ela com paixão por baixo da mesa do quino; aquela voz, com que ele lhe chamava filhinha, recitava agora as orações inefáveis, e parecia-lhe melhor que o gemer das rebecas, revolvia-a mais que os graves do órgão!” (Queirós, 2000: 673). Mas como a educação religiosa nem esclarece nem alivia a consciência, pelo contrário, em tudo o que lhe convém vê o pecado, a protagonista, embora queira viver despreocupada e intensamente a paixão, sente medo, tem visões, sonhos que acusam a sua consciência frágil.
Francisco Dantas (1999) aponta a figuração de Amélia como uma representante mais complexa deste beatério no qual está inserida, elucidando como na personagem os elementos do contexto, conjugados, criam a projeção de um Deus completamente proibitivo e punitivo, que levaria a pecadora a doenças ou morte como castigo, se acaso merecesse: “Desse modo, a beata sempre tem diante de si, como um pesadelo inarredável, a presença ardilosa e sub-reptícia do Maligno, desse inimigo que ronda diligentemente a sua alma, pronto para aí se instalar, aproveitando oportunamente o menor descuido. De maneira que só resta à devota penitenciar-se, viver em permanente sobressalto, rezar incansavelmente em busca da salvação” (Dantas, 1999: 109).
Vemos, desse modo, que a formação de beata recebida pela personagem não lhe deu sustentação para viver de modo consciente e equilibrado o sentimento avassalador pelo padre. Sobre personagem romanesca, Carlos Reis e Ana Cristina Macário Lopes, ao elencarem os elementos que configuram “uma semântica da personagem”, lembram que ela se reporta a "sentidos de extração temática e ideológica" (Reis e Lopes, 2002: 316); no tocante a Amélia, um desses sentidos é o da hipocrisia, através da qual o clero dominava a mulher. Resulta disto, na personagem, um forte sentimento de culpa mesclado ao medo do castigo divino e da condenação social com base nos valores do próprio clero ao qual se submetia: “Cessaria as suas relações com Amaro, se o ousasse: mas receava quase tanto a sua cólera como a de Deus. Que seria dela, se tivesse contra si Nossa Senhora e o senhor pároco? Além disso, amava-o. Nos seus braços, todo o terror do Céu, a mesma ideia do Céu desaparecia; refugiada ali, contra o seu peito, não tinha medo das iras divinas; o desejo, o furor da carne, como um vinho muito alcoólico, davam-lhe uma coragem colérica; era com um brutal desafio ao Céu que se enroscava furiosamente ao seu corpo. - Os terrores vinham depois, só no seu quarto” (Queirós, 2000: 783).
Amélia figura como a mulher ingênua da sociedade oitocentista, fruto de uma educação norteada pelo dogmatismo religioso, notadamente nas grandes proporções de influência que o clero católico mantinha nas pequenas cidades, tal como a situação e época retratadas pelo romance queirosiano. A situação de medo e culpa da personagem, entre altos e baixos de ansiedade, perdura até que descobre a gravidez. Mais uma vez se submete ao que determina o padre e sofre uma espécie de desterro do seu ambiente social: “Sofre uma quebra psíquica, resultante do abandono a que é votada, da perda das suas fantasias de grandeza, em que confundia êxtase sexual e êxtase místico” (Luzes, 2001: 217). Nesta apreciação do romance pela vertente da psicanálise freudiana, Pedro Luzes observa que Amélia acaba recebendo o destino típico das mulheres que fizeram Amaro sofrer, numa espécie de projeção sádica.
Das muitas situações vividas por Amélia, uma das passagens que merece destaque é quando o narrador descreve seu estado depressivo, o que mostra a grande transformação que já vinha se instaurando em suas características físicas e psicológicas: “Caiu então numa melancolia histérica que a envelhecia; passava os dias suja e desarranjada, não querendo dar cuidado ao seu corpo pecador; todo o movimento, todo o esforço lhe repugnava; as mesmas orações lhe custavam, como se as julgasse inúteis; e tinha atirado para o fundo de uma arca o enxoval que andava a costurar para o filho (...)” (Queirós, 2000: 863). Da fase depressiva, novos pensamentos começam a tecer novas mudanças em seu comportamento. No blogue “Eça de Queirós”, Carlos Reis define que acontece uma reabilitação da personagem “enquanto mulher e cristã, quando contacta com uma nova forma de entender a religião, que é a do abade Ferrão. Esta reabilitação passa também pela forma como Amélia se posiciona sucessivamente perante a sua gravidez: primeiramente de um modo quase histérico, depois aceitando-a, desejando a criança e mesmo estando aberta à possibilidade de construir uma família com João Eduardo.”
A popularidade d’O Crime do Padre Amaro, em parte decorrente dos temas e do erotismo que nele se representam, deu lugar, desde muito cedo, a adaptações e a versões transmediáticas. Cite-se, entre outras, a primeira dramatização, logo em 1884, por Augusto Fábregas, no Rio de Janeiro; por ter sido proibida, foi levada à cena apenas em 1890, com Ismênia Santos como Amélia. No cinema, O Crime do Padre Amaro conheceu duas versões recentes: uma de 2002, realizada por Carlos Carrerra e localizada no México de hoje, com Ana Claudia Talancón como Amélia (cf. Scoparo, 2008);e outra obra cinematográfica dirigida por Carlos Coelho da Silva, em 2005, situada na Lisboa da atualidade, com Soraia Chaves no papel de Amélia (cf. Alvarenga, 2011) e também produzida e realizada como minissérie.
Referências
ALVARENGA, Rui M. (2011). “O crime do Padre Amaro e o argumento socioconstrutivo de Vera Sacramento”. Forma Breve. 9: 237-248, disponível em http://revistas.ua.pt/index.php/formabreve/article/view/2342, (consultado a 6/8/2018).
DANTAS, Francisco J.C. (1999). A mulher no romance de Eça de Queirós. São Cristovão: Editora UFS/Fundação Oviêdo Teixeira.
LUZES, Pedro (2001). Sob o manto diáfano do Realismo: psicanálise de Eça de Queirós. Lisboa: Fim de Século.
QUEIRÓS, Eça de (2000). O crime do Padre Amaro (2.ª e 3.ª versões). Edição crítica de Carlos Reis e Maria do Rosário Cunha. Lisboa: INCM.
REIS, Carlos e Ana Cristina M. LOPES (2002). Dicionário de Narratologia. 7.ª ed., Coimbra: Almedina.
SCOPARO, Tânia R.M.T. (2008). O crime do Padre Amaro: do romance ao filme. Dissertação de mestrado. Marília: Faculdade de Comunicação, Educação e Turismo, da Universidade de Marília.
[publicado a 09-10-2016]