Caim é o protagonista do derradeiro e homónimo romance de José Saramago, publicado em 2009.
Partindo da lógica da (re)figuração do retrato e da sobrevida da personagem, Caim assume e dá continuidade ao código genético-literário primitivo: condenado a vaguear até ao fim dos dias, amaldiçoado por Deus através de um sinal negro marcado no meio da testa por ter matado Abel, seu irmão. Esse é, de resto, o único traço físico e distintivo da personagem, que figura, por exemplo, nas capas do romance publicadas pela editora Caminho. Partindo desse vaguear, a personagem viajará por diversos episódios bíblicos que povoarão os capítulos do romance. Saramago apresenta uma personagem “com uma desenvoltura e profundidade que não encontrávamos na sua origem bíblica” (Vieira, 2020: 121). Caim torna-se ativo, consciente e inconformista, o que se alia à sua constante ousadia em confrontar Deus, os seus gestos e palavras. O autor faz de Caim uma “espécie de vingador humano dos dramáticos castigos de Deus, das cegas punições divinas” (Martins, 2014: 103). Logo após a morte de Abel, em diálogo com Deus, a personagem revela-se corajosa e disruptiva: “Sim, é verdade, eu fui o braço executor, mas a sentença foi ditada por ti, O sangue que aí está não o fiz verter eu, caim podia ter escolhido entre o mal e o bem, se escolheu o mal pagará por isso, Tão ladrão é o que vai à vinha como aquele que fica a vigiar o guarda, disse caim, E esse sangue reclama vingança, insistiu deus, Se é assim, vingar-te-ás ao mesmo tempo de uma morte real e de outra que não chegou a haver, Explica-te, Não gostarás do que vais ouvir, Que isso não te importe, fala, É simples, matei abel porque não podia matar-te a ti, pela intenção estás morto” (Saramago, 2017: 31).
Como forma de “matar Deus”, Caim embarca em diversos episódios bíblicos – com especial incidência no Livro do Génesis –, revelando as atrocidades do criador do universo. Nesse constante viajar, adquire uma nova interioridade e forma de ver o mundo, aliada à estratégia da transficcionalidade, pois Saramago coloca em confronto “dois ou mais textos [que] partilham elementos, tais como as personagens, lugares imaginários, ou universos ficcionais” (Saint-Gelais, 2005: 612, tradução minha).
A título de exemplo, refiram-se dois episódios, reveladores da consciência humanista, sensível e militante que Caim adquire ao longo da narrativa. O primeiro é o do sacrifício de Isaac: “O leitor leu bem, o senhor ordenou a abraão que lhe sacrificasse o próprio filho (…). O lógico, o natural, o simplesmente humano seria que abraão tivesse mandado o senhor à merda, mas não foi assim.” E mais adiante: “Ato contínuo, empunhou a faca para sacrificar o pobre rapaz quando alguém lhe segurava o braço, ao mesmo tempo que uma voz gritava, Que foi você fazer, velho malvado, matar o seu próprio filho, queimá-lo, é outra vez a mesma história, começa-se por um cordeiro e acaba-se por assassinar aquele a quem mais se deveria amar, Foi o senhor que ordenou, foi o senhor que ordenou, debatia-se abraão, Quem é você, Sou caim, sou o anjo que salvou a vida de isaac. Não, não era certo, caim não é nenhum anjo, anjo é este que acabou de pousar com um grande ruído de asas e que começou a declamar como um ator que tivesse ouvido finalmente a sua deixa, Não levantes a mão contra o menino, não lhe faças nenhum mal, pois já vejo que és obediente ao senhor, disposto, por amor dele, a não poupar nem sequer o teu filho único, Chegas tarde, disse caim, se isaac não está morto foi porque eu o impedi. (…) Vale mais tarde do que nunca, respondeu o anjo com prosápia, como se tivesse acabado de enunciar uma verdade primeira, Enganas-te, nunca não é o contrário de tarde, o contrário de tarde é demasiado tarde, respondeu-lhe caim” (67-68). O protagonista transubstancia-se em anjo salvador de Isaac, reescrevendo, assim, a história.
O segundo episódio diz respeito à extinção de Sodoma e Gomorra. Após a destruição das cidades, Caim, agora companheiro de Abraão, qual dupla picaresca, afirma: “Tenho um pensamento que não me larga, Que pensamento, perguntou abraão, Penso que havia inocentes em sodoma e nas outras cidades que foram queimadas, Se as houvesse, o senhor teria cumprido a promessa que me fez de lhes poupar a vida, As crianças, disse caim, aquelas crianças estavam inocentes, Meu deus, murmurou abraão e a sua voz foi como um gemido, Sim, será o teu deus, mas não foi o delas” (82).
Já no final do romance, é Caim quem surge da arca de Noé, confrontando Deus os seus desígnios: “Caim és, e malvado, infame matador do teu próprio irmão, Não tão malvado e infame como tu, lembra-te das crianças de sodoma” (144). No que diz respeito à transposição intermediática, é de realçar a peça de teatro Caim, encenada por Teresa Frota, com performance de Henri Pagnoncelli e realização de Prólogo Produções.
Referências
MARTINS, Manuel Frias (2014). A Espiritualidade Clandestina de José Saramago. Lisboa: Fundação José Saramago.
SAINT-GELAIS, Richard (2005). “Transfictionality”, in: D. Herman et alii (eds.). Routledge Encyclopedia of Narrative Theory. London: Routledge.
SARAMAGO, José (2017). Caim. Porto: Porto Editora.
VIEIRA, José (2020). “Caim, um herói da post-modernidade”, in: Baltrusch, Burghard e Alonso, Antía Monteagudo (eds.). Santa Barbara Portuguese Studies. (Vol. 5) Second Series. Santa Barbara: University of California Santa Barbara, pp. 118-129.
[Publicado a 1-7-2025]