Personagem do romance Não se pode morar nos olhos de um gato (2016), de Ana Margarida de Carvalho, o Capataz é uma figura ambígua e inquietante entre os oito sobreviventes de um naufrágio de um navio negreiro, ocorrido em pleno século XIX. A obra, marcada por um tom irônico e levemente paródico — já insinuado no título, extraído de um verso de Alexandre O’Neill — tensiona o grotesco e o sublime, oscilando entre a evocação do romance oitocentista e a fragmentação narrativa contemporânea.
Na narrativa, o Capataz é apresentado como uma presença bruta e calada, antiga personificação do poder violento a serviço do senhor de escravos: “é homem de poucas falas, preza demasiado as palavras, seus murmúrios e infinitas combinações. A sua função é fazer estalar o chicote e acomodar o maior número de escravos possível, deitados, tão juntos que só encontram posição de lado, peças humanas encaixadas no porão” (Carvalho, 2018: 23). Para os demais sobreviventes, é um espectro ameaçador, zelando pela ordem através da força e da intimidação. Apenas José, o criado — que mais adiante se revela Maria Clara — lhe reserva uma memória redentora, enxergando nele seu salvador e fiel depositário de segredos: “Este homem cruel, destituído de compaixão [...] era o santo de José” (199).
Dono de uma inteligência animalesca e instintiva, o Capataz revela-se indispensável à sobrevivência do grupo na praia intermitente. Sua capacidade de ler os ritmos naturais, intuir as marés e organizar os recursos lhe confere uma liderança inicial incontestável. Como analisa Dora Nunes Gago (2021), “at the same time, the overseer’s leadership and superiority over the other members of the group is clear. His use of survival tactics and the subjugation of the ‘other’ that allow him to control essential supplies like drinking water and food from the moment they arrive at the beach are noticeable” (Gago, 2021: 4). Nesse sentido, o Capataz não apenas encarna a herança de um poder violento e opressor, mas também o jogo instável de hierarquias e a tensão moral entre sobrevivência e culpa.
A construção do Capataz é deliberadamente lacunar e marcada pela opacidade. Teresa, a senhora, tenta em vão decifrá-lo: “[...] as interrogações atropelavam-se” (349). A ambivalência emerge de descrições contraditórias, que se alternam entre a brutalidade e uma delicadeza inesperada: “Aquele homem seco, bruto, [...] agarrava-se agora a ela e compunha-lhe as vestes e o cabelo com a suavidade de quem veste um filho” (74-75). Há indícios de uma origem mais elevada, como Teresa imagina: “parecia-lhe que tinha maneiras mais elevadas, de outra condição” (261).
A sobrevivência é a marca de sua trajetória: “fora ele a dar os primeiros sinais de alerta pela segurança do navio [...] tinha, de certeza, a cautela de quem já se viu muitas vezes na vida empoleirado no galho mais quebradiço da árvore, por cima do charco dos crocodilos” (93). Singularmente, o Capataz é o único a não ter o nome revelado, o que parece lhe conferir uma aura arquetípica, e é através do olhar de José/Maria Clara, que o leitor acessa traços insuspeitados de cuidado e ternura, mas também o isolamento e a culpa silenciosa que pesam sobre o personagem.
O Capataz exerce fascínio sobre as mulheres, mas jamais ousa tocar sua protegida: “Pela noite fora, sentia passadas fugidias, pés de mulheres descalças que vinham deitar-se com aquele homem atroz que as atraía sem palavras nem rodeios, apenas com um olhar. [...] A si nunca lhe deitara aquele olhar” (284). Nem Teresa escapa dessa atração ambígua, partilhando com ele uma noite de confidência e silêncios antes da travessia. Sua morte adquire um tom irônico e quase sacrílego: a santa mutilada, que o Capataz havia salvado do naufrágio e dos próprios náufragos, fere-o mortalmente quando ele tenta atravessar até a outra praia pela corda improvisada com as roupas de Teresa. É um desfecho que remete à expressão bíblica “a tua fé te salvou” — dita por Jesus a diferentes personagens nos Evangelhos — mas aqui ressignificada de modo perverso, pois é justamente a devoção supersticiosa do Capataz à imagem santa que o leva à morte: “as farpas aguçadas, madeira de lariço, da santa tinham-se-lhe espetado no ventre na investida de uma onda. Estava de pálpebras semidevoradas pelos peixes, condenado a ter escancarados os olhos para a eternidade” (358).
Referências
CARVALHO, Ana Margarida de (2018). Não se pode morar nos olhos de um gato. Porto Alegre: Dublinense, 2018.
GAGO, Dora Nunes (2021). “The smell of time in Ana Margarida de Carvalho’s Não se pode morar nos olhos de um gato: an outline of the human condition”. Acta Scientiarum: Language and Culture, vol. 43, n.º 1, e55171, jan.-jun./2021. Disponível em: https://doi.org/10.4025/actascilangcult.v43i1.55171. Acesso em: 13 de março de 2025.
[publicado a 12-6-2025]