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Rui

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Autor: Dulce Maria Cardoso

Rui (Dulce Maria Cardoso, O retorno)

      Rui, personagem de O retorno (2012), de Dulce Maria Cardoso, é um adolescente de 15 anos, branco, “tão louro e com os olhos tão azuis” (Cardoso, 2012: 144), quase um “celta”, próprio de uma família privilegiada que residia em Luanda, mas que precisaria emigrar para o Estoril. O livro disruptivo inicia-se com a conjunção adversativa “mas”, ou seja, depois de toda a história de colonização portuguesa, as memórias de Rui tentarão traçar novos caminhos, a fim de cumprirem “a lei do retorno”.

       Rui é “a medida de conforto” (Cardoso, 2024) da autora, pois ela mesma está ali para ver o império “ruir” por meio dessa personagem que se liga ao seio familiar de maneira bastante sintomática: a mãe vive adoentada; a irmã, envergonhada pela nova situação da família; o pai e o tio estão desaparecidos. Todos enfrentam os desafios diante dos problemas políticos do país. Assim, Rui, sua mãe D. Glória e sua irmã Milucha têm de deixar Luanda, a terra em que nasceram, e que ajudaram a construir de maneira próspera. D. Glória, sempre positiva, garante que um dia o pai de seus filhos irá voltar, assim, “um quarto pode ser uma casa e este quarto e esta varanda de onde se vê o mar é a nossa casa” (165, 168 e 173). Entretanto, Rui parece não conceber tal ideia, por isso rejeita o quarto de hotel no Estoril como sua nova casa naquela terra estranha.

       A história colonial é narrada pela perspectiva de Rui, narrador-personagem coerente com a sua faixa etária de vida, mas que faz parte da categoria dos opressores. Sua visão de todo o processo de colonização é parcial. Contudo, por meio dele, o leitor percebe uma espécie de trauma coletivo diante do movimento de emigração para um país desconhecido, isto é, Portugal, ao qual Rui chama de “metrópole”: “Parecia impossível termos chegado à metrópole. Ainda mais depois do que se passou, ainda mais sem o pai. Nunca pensei estar na metrópole sem o pai” (77). Inúmeras vezes o narrador-personagem afirma que “a metrópole muda as pessoas” (192).

      Rui não se coloca como opressor ou vítima: a respeito do primeiro, ele ignora tal condição; com relação à segunda, não aceita o papel de vítima, então, não se sente confortável ao ser chamado de “retornado” pela professora. Ele procura a todo custo se colocar como um novo “descobridor dos mares” em busca de sua identidade, especialmente no tocante à língua. Lembra-se constantemente dos que ficaram em Angola, principalmente, dos amigos Gegé e Lee, bem como dos seus dialetos e das brincadeiras da infância. A nova experiência com a terra estranha ocorre também por meio das rememorações, das comparações inevitáveis e da sua percepção sobre a língua. Rui possui uma concepção crítica e ao mesmo tempo fechada de língua, que abarca o sentido denotativo; portanto, ele afirma sentir necessidade de “decorar as palavras do dicionário” (192) para conseguir sobreviver em outros espaços. Neste sentido, a língua consiste não somente na busca pela identidade, mas também no símbolo das relações de poder, afinal por meio dela o narrador-personagem se coloca em posição superior aos “pretos”.

         Rui é uma personagem que cresce ao longo da narrativa, passando de uma perspectiva ingênua, um tanto pueril, para uma que evidencia a cultura máscula em que cresceu; ao descobrir sua sexualidade, envolve-se afetivamente com mulheres mais velhas, como a preta Fortunata e a branca Silvana, esta última mulher de Queine, porteiro do hotel e amigo de Rui. A personagem manifesta o sentimento de não-pertencimento, por isso as cicatrizes e o retorno do pai podem ser consideradas as chaves que permitirão o reencontro e os medos do jovem, sobretudo, o “medo de sermos outra vez uma família com uma casa” (267), a angústia do regresso, quiçá, o medo de não serem felizes como retornados.

        Referências

        CARDOSO, Dulce Maria (2012). O retorno. Rio de Janeiro: Tinta-da-China Brasil.

      CARDOSO, Dulce M. "Entrevista a Café com Letras". Oeiras, 18 de abril, 2024 (disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=hMqmkLFS8BA&t=2617s. Acesso em: 18 dez. 2024).

[publicado a 9-6-2025]

Margarida Pontes Timbó