Na obra Cemitério de Pianos (2008), José Luís Peixoto (1974-… ) apresenta a história da família Lázaro, uma família comum de Benfica, sob o olhar de Francisco Lázaro, personagem tripartite, representado pelas vozes narrativas do pai-avô, do filho-pai e do filho-neto, todos com o mesmo nome.
Francisco Lázaro (1889–1912) existiu na vida real e foi um atleta maratonista português, que faleceu de insolação, após percorrer trinta quilômetros da maratona dos Jogo Olímpicos de Estocolmo, em 1912. José Luís Peixoto utiliza esta história real como elemento central da personagem Francisco Lázaro (o filho-pai da narrativa é um corredor maratonista e morre nas mesmas condições do Francisco Lázaro da vida real), mas o autor faz questão de ressaltar que não existe nenhuma relação biográfica entre a obra e a vida do Francisco Lázaro real: “A personagem que, neste romance, tem o mesmo nome, baseia-se apenas circunstancialmente na sua história. Sendo todos os episódios e personagens apresentados do âmbito da absoluta ficção” (Peixoto, 2008, p. 303).
A projeção pai-avô de Francisco Lázaro configura um narrador onipresente, que inicia a narrativa após a sua morte, em tempo pretérito: “O telefone tocou de novo. Eu tinha acabado de morrer” (p. 15). Ele narra episódios do passado, quando ainda estava vivo, com a melancolia de não viver mais, assim como narra acontecimentos que não viveu, porque já estava morto, com a melancolia do testemunho inerte. A projeção filho-neto de Francisco Lázaro narra os episódios de sua própria vida, que só se tornará real no final do livro, quando ele nasce. É nessa pré-vida narrada que ele descobre seu pai e, consequentemente, a si mesmo, em processo de autoconhecimento. “Ao ouvir o meu tio, finalmente, eu e o meu pai éramos ainda mais desconhecidos” (p. 164). À semelhança de seu avô, o Francisco Lázaro (filho-neto) narra os acontecimentos com a melancolia do não vivido. No entanto, contrariamente ao avô, ele fala de acontecimentos que não viveu, porque ainda não nasceu.
Na lacuna que existe nas narrativas do avô e do neto, ancorada no espaço entre o passado revivido e o futuro antecipado, está a narrativa da projeção filho-pai de Francisco Lázaro. Este aparece enquanto reminiscência na narrativa de seu pai, enquanto projeção difusa na narrativa de seu filho e como personagem central no grande trecho da corrida, que ele narra enquanto corre, misturando sensações do momento com sentimentos vindos de suas memórias, amalgamando sua vida à de seu pai, já morto: “Não quero apenas ter este nome, quero ser dono dele” (p. 89), bem como à de seu filho, ainda não nascido: “Filho. Sinto-te na palma da mão, por baixo da pele da tua mãe” (p. 251).
Mais do que personagem ou narrador, Francisco Lázaro é a figura ficcional, na acepção mais profunda do termo, porque ao mesmo tempo em que “desempenha funções na composição e na comunicação instaurada pelo relato”, também “vive acontecimentos nele narrados” (Reis, 2018, p. 162). José Luís Peixoto oferece a tridimensionalidade de uma figura que rompe com tempo e espaço, coexistindo em pessoas que são diferentes, mas que são também as mesmas, em um jogo interno de sobrevida, em que a morte de um remete ao nascimento do outro, seja enquanto homem independente e que vai atrás do seu sonho (no caso da projeção filho-pai, que vai correr a maratona), seja enquanto nascimento literal (no caso da projeção filho-neto, que nasce no mesmo dia em que o maratonista, seu pai, morre).
Essa sobrevida da personagem - “prolongamento das suas propriedades distintivas, como figura ficcional, permitindo reconhecer essas propriedades noutras figurações” (Reis, 2018, p. 485) -, e que aparece na obra, ganha contornos mais profundos, na medida em que Francisco Lázaro é, em suas três projeções, um carpinteiro de uma oficina que ressuscita pianos, retirando as peças de um local chamado Cemitério de Pianos, em mais uma coexistência de vida e morte, onde pedaços de uma vida anterior são os responsáveis por uma vida nova.
Francisco Lázaro é o avô, mas também é o pai e o filho (ver alteridade), em uma espécie de Santíssima Trindade figurativa, na qual vida e morte, se dissolvem em uma existência que será eterna.
Referências
PEIXOTO, José Luís (2008). Cemitério de Pianos. Rio de Janeiro: Editora Record.
REIS, Carlos (2018). Dicionário de Estudos Narrativos. Coimbra: Almedina.
[publicado a 6.4.2025]