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António Jorge da Silva

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António Jorge da Silva (Valter Hugo Mãe, A máquina de fazer espanhóis)

Protagonista do romance A máquina de fazer espanhóis (2016), de Valter Hugo Mãe, António Jorge da Silva configura-se como um velho barbeiro português de 84 anos, cujos dias finais transcendem a dimensão individual e adquirem contornos existenciais e sociopolíticos. A narrativa inicia-se com a perda de Laura, sua esposa, com quem compartilhou 48 anos de casamento, evento que precipita a internação do protagonista em um lar de idosos — um asilo ironicamente chamado “Feliz Idade” — retratado como um espaço opressor, cercado por um cemitério. Esse espaço simbólico o conduz a uma profunda reflexão sobre a finitude, a memória e a identidade.

António Jorge da Silva é apresentado como um sujeito comum, pertencente à classe trabalhadora e marcado por um pragmatismo construído ao longo de uma vida de esforço e resiliência. Entretanto, sua condição de idoso deslocado revela as fragilidades de um modelo social que marginaliza os mais velhos, expondo as contradições de uma sociedade em que o progresso econômico e tecnológico não é acompanhado por avanços humanos no cuidado com as pessoas em fases finais da vida. Sua jornada no lar de idosos constitui, assim, uma crítica à desumanização do envelhecimento nos contextos contemporâneos. A relação de António com sua filha, responsável por sua internação, reflete uma desconexão geracional típica das tensões familiares atuais, em que o avanço da idade enfraquece os laços afetivos, muitas vezes em detrimento da comunicação genuína e do cuidado emocional.

O lar em que António é confinado representa um microcosmo da sociedade portuguesa, na qual a diversidade das histórias individuais reflete as várias dimensões da identidade coletiva do país. Em meio à solidão inicial, António encontra uma nova rede de interações sociais, sendo desafiado a confrontar suas convicções e preconceitos. A convivência com outros idosos, como Esteves sem metafísica, remete a um diálogo intertextual com a tradição literária portuguesa, sobretudo com Tabacaria, do heterônimo pessoano Álvaro de Campos. Essa referência sublinha a relação entre o indivíduo e a memória cultural coletiva, explorando as tensões entre a identidade pessoal e a herança histórica.

Com efeito, António Jorge da Silva funciona como uma alegoria de Portugal pós-Revolução dos Cravos, uma nação ainda lidando com as marcas de um passado autoritário e com as promessas frustradas de modernidade e inclusão. A construção da personagem incorpora elementos de uma geração que cresceu sob o regime salazarista, internalizando valores de conformidade, autoritarismo e patriarcalismo, mas que, ao mesmo tempo, vivencia um despertar tardio para os horizontes democráticos e humanistas que redefiniram o país. Esse aspecto é evidenciado em suas reflexões sobre o regime fascista e no desconforto com os resquícios de um pensamento conservador, que ele gradativamente questiona durante os diálogos com seus companheiros.

A memória desempenha um papel central na construção da personagem. António revisita episódios marcantes de sua vida, confrontando arrependimentos e lacunas acumulados ao longo dos anos. A morte de Laura, em particular, atua como catalisador para o enfrentamento de questões universais da existência: o amor, a perda, a solidão e a busca de significado diante da inevitabilidade do fim.
A interação de António com os outros residentes do lar revela um processo de transformação gradual. Ele transita da apatia inicial para uma abertura ao afeto e à solidariedade. Ao final, não encontra respostas definitivas para os dilemas que o afligem, mas sua trajetória sugere que o sentido reside na própria experiência humana de partilha e transformação.

Referência

MÃE, Valter Hugo (2016). A máquina de fazer espanhóis. São Paulo: Biblioteca Azul.

[Publicado a 5.4.2025]

 

Vítor Yukio Ivasse Alves