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Paula Fernanda

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Paula Fernanda (Fernanda Botelho, A Gata e a Fábula)

Personagem em torno da qual gravita a trama de A Gata e a Fábula (1960), de Fernanda Botelho, Paula Fernanda nos é apresentada como uma menina que não corresponde aos padrões sociais de sua época. Sempre suja, despenteada, em meio aos cães e “pronta para escandalizar com palavras e atos” (Genta, 2005: 34), Paula pertence ao rol de figuras femininas desse universo romanesco criado por Fernanda Botelho que “parecem estar fatalmente (ou socialmente?) condenadas ao fardo eterno da sua existência, sabendo que as aguarda a incompreensão frequente, a solidão e o sofrimento, o vazio e a morte” (Martins, 2019: 81).

Filha mais nova de Maria da Luz e de Luís Soares (Pena d’Alba), possível herdeiro de um título de marquês (que, ao fim, vai para o filho bastardo do tio), Paula Fernanda cresceu na paisagem verdejante do Minho, cercada pela indiferença do pai, encastelado em seus estudos, e pela resignação da mãe, que se exila de seu casamento fracassado na religião.

Na sua exterioridade, Paula se mostra o oposto daquilo que se considera feminino, como se pode observar nesta comparação: “Maria Francisca ou Chiquinha, como era chamada em casa, é o oposto de Paula Fernanda. Enquanto Paula é agressiva, falante e, muitas vezes, má, Chiquinha é reservada, comedida e bondosa. Chiquinha é loura, de pele rosada, mas Paula tem os cabelos muito crespos e escuros; sua pele e seus olhos também são escuros. Paula é feia mas Chiquinha é bonita” (Genta, 2005: 35).

Na interioridade, no entanto, a personagem demonstra uma outra faceta, o que se pode perceber na sua preocupação em preparar Rosa “para ser uma noiva branca, com flor de laranjeira e véu” (Botelho, 2018: 206). Sua agressividade, tantas vezes relatada por outros personagens, pode ser vista como um véu que a protege da falsidade e do vazio das relações humanas que a cercam. Temos a garota espevitada a quem ninguém pode controlar, mas também temos a menina que busca refúgio com Pardala e é a única capaz de abrigar a filha da mulher-de-todos.

Paulinha, Paula e, por fim, Paula Fernanda – um nome que se metamorfoseia da mesma forma que a personagem que nomeia –, a “gata” poucas vezes tem voz na narrativa. Apesar da indiscutível centralidade de Paula, o acesso à sua consciência é medido a conta-gotas, de forma a criar uma imagem caleidoscópica daquela a quem quase todos recriminam. Afonso parece ser o único que consegue absorvê-la em sua inteireza, sem tentar encaixá-la em preâmbulos femininos. Diz a Duarte: “Logo que a vi, ainda ela não tinha dito uma palavra, e eu já estava a gostar dela” (155).

É a gata de quem Datinho tem medo, especialmente depois de ter recusado ser seu primeiro amor. E é em torno desse não-acontecimento que ocorre a fábula.

No romance, há duas menções a fábulas de Perrault e de La Fontaine, a primeira delas, quando Duarte se põe a pensar em Paula Fernanda enquanto aguarda que Afonso chegue à sua casa em Almeira. Esta é, no entanto, uma “fábula que La Fontaine nunca escrevera: O Sol e o Verme” (122). Dadas as pistas narrativas, poder-se-ia, quem sabe, estabelecer uma relação intertextual, quiçá paródica, com a fábula A Gata Metamorfoseada em Mulher, de La Fontaine, em que, ao contrário, temos uma mulher que se metamorfoseia em “alligator-gata” para enfim voltar a ser mulher, quando cumpre-se a promessa.

Mateus, pai de Duarte Henrique, homem bruto e bêbado, pede que Paula Fernanda não se case com o filho (“não contribuas para o fazer ainda mais desgraçado”; 234), instando-a a dar-se o próprio perdão através de uma promessa difícil de ser cumprida. Só então, ele diz, “terminará o teu castigo e a tua renúncia, o teu perdão ser-te-á concedido e poderás então ser feliz” (235).

Paula ouve o canto da cotovia quando Duarte Henrique visita Almeira de surpresa, na intenção de pedi-la em casamento. O pedido e a consequente renúncia de Paula Fernanda parecem quebrar o ciclo de casamentos arranjados, do qual os pais de ambos eram vítimas infelizes. Ao dizer não, Paulinha liberta-se não só a si mesma, como a todos ao seu redor: “Sabes, Afonso, redescobri-me. Agora sim! Acabou-se a fábula. Do teu D. H.” (257).

Ao partir com Afonso, a quem ela enfim pode se entregar, a despedida a comove, mas não a entristece e ela é capaz, inclusive, de fazer as pazes com o pai – “um vulto mais pesado, mais cinzento, mais velho” (259).

 

Referências

BOTELHO, Fernanda (2018). A Gata e a Fábula. Lisboa: Abysmo, 2018.

GENTA, Alda Maria Arrivabene (2005). A gata e a fábula e Exílio: a manifestação do desamor no mundo moderno. Dissertação de Mestrado em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa. São Paulo: Univ. de São Paulo, Fac. de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Disponível em: https://doi.org/10.11606/D.8.2006.tde-21082007-150859. Acesso em: 16 de janeiro de 2025.

MARTINS, José Cândido de Oliveira (2019). "Retratos femininos em ciclo ficcional de Fernanda Botelho: vozes narrativas e atmosfera de melancolia." Revista do Centro de Estudos Portugueses, vol. 39, n.º 61, pp. 71-86. Disponível em: https://doi.org/10.17851/2359-0076.39.61.71-86. Acesso em: 16 de janeiro de 2025.

 

[Inserido a 29.03.2025]

Jeanine Geraldo Javarez